O presente ensaio tem por escopo propor uma discussão, sem pretensão de esgotar o tema, acerca da (im)possibilidade da aplicação do princípio da insignificância(1) no crime de roubo, a partir de uma abordagem dogmática.
O tema revela-se interessante quando estudado a partir de acórdãos prolatados pelos Tribunais Superiores, que vêm firmando posicionamento a respeito da inaplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes contra o patrimônio praticados com violência. Segundo entendimento, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça, “conforme orientação desta Corte Superior de Justiça e do Supremo Tribunal Federal é inaplicável, ao crime de roubo, o princípio da insignificância – causa excludente da tipicidade penal –, pois, tratando-se de delito complexo, em que há ofensa a bens jurídicos diversos (o patrimônio e a integridade da pessoa), é inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão.”(2)
Entretanto, apesar de posicionamento consolidado por nossos Tribunais Superiores acerca da matéria, percebe-se, facilmente, a ausência de argumentos dogmáticos nos acórdãos que tratam do assunto.
Segundo Cláudio Brandão, dogmática penal é a argumentação que se faz a partir do próprio direito penal e dos seus elementos constitutivos, ou seja, a dogmática penal é o método de estudo do direito penal.(3)
Para se compreender o direito penal, assim, é imprescindível a compreensão de seus institutos e elementos constitutivos. Destarte, para se analisar a aplicabilidade ou não do princípio da insignificância em matéria penal, revela-se imprescindível o estudo da norma penal, bem como dos elementos que a integram, em especial, o bem jurídico nela contido.
É corrente afirmar que a missão da norma penal, assim como as demais normas do direito, é a de proteção. No entanto, a diferença existente entre a norma penal e as demais normas do direito reside na especial gravidade dos meios empregados pela norma penal para cumprir a sua função de proteção, que, em última análise, é a tutela de bens jurídicos.(4)
Isto posto, importante se compreender a estruturação da norma penal, para alcançar a tutela de bens jurídicos. Nesse sentido, tem-se, com base em Everardo Luna, que a norma é uma unidade dialética entre preceito e conteúdo. O preceito da norma é o comando normativo, enquanto que o seu conteúdo é o bem jurídico(5) protegido.
Logo, pode-se afirmar, inicialmente, que, quando um agente está acobertado pelo princípio da insignificância, viola apenas o comando da norma e não o seu conteúdo, ou seja, o bem jurídico tutelado.(6)
No crime de furto, não há maiores problemas para se entender a incidência do princípio da insignificância como excludente da tipicidade penal, tendo em vista que há no artigo 155, do Código Penal brasileiro,(7) apenas um bem jurídico protegido, qual seja, o patrimônio. Tomemos o seguinte exemplo para elucidar o assunto: se A subtrai uma caneta esferográfica de B, de valor material mínimo, viola tão somente o preceito da norma e não o seu conteúdo, isto é, o bem jurídico patrimônio nela tutelado.
Analisada a incidência do princípio da insignificância no crime de furto, passemos à sua análise no crime de roubo, com previsão legal no artigo 157, do Código Penal brasileiro.(8)
Segundo Cezar Roberto Bitencourt, o crime de roubo é complexo, “(...) tendo como elementares constitutivas a descrição de fatos que, isoladamente, constituem crimes distintos; protege, com efeito, bens jurídicos diversos: o patrimônio, público ou privado, de um lado, e a liberdade individuale a integridade física e a saúde, que são simultaneamente atingidos pela ação incriminada.” (9)
Ora, doutrina e jurisprudência convergem no sentido de classificar o crime de roubo como complexo, tendo em vista a característica, desta modalidade de delito, de proteger mais de um bem jurídico.
Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, sob a alegação de ser o crime de roubo um delito complexo, não recepciona o princípio da insignificância, quando o objeto subtraído for de pequeno valor, sob a alegação de ser inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão, argumento esse dogmaticamente insustentável.
Destaque-se que mesmo o crime de roubo ofendendo mais de um bem jurídico, o que não se nega, é perfeitamente viável dogmaticamente a aplicação do princípio da insignificância nessa modalidade delitiva, que deve se adstringir apenas ao bem jurídico patrimônio, restando-se, decerto, violado(s) outro(s) bem(ns) jurídico(s), como, por exemplo, a liberdade individual.
Nessa linha de raciocínio, subtraído, mediante violência ou grave ameaça, um objeto de valor material mínimo, configurado estaria o crime de constrangimento ilegal, capitulado no artigo 146, do Código Penal brasileiro,(10) devido à violação do bem jurídico liberdade individual, mas não o crime de roubo.
No mesmo sentido, aliás, são as lições de Paulo Queiroz, ao afirmar que “(...) ante à insignificância do objeto subtraído, não há propriamente ofensa ao patrimônio; logo, não há crime patrimonial, razão por que o autor deverá responder, unicamente, pela infração residual, isto é, constrangimento ilegal (CP, art. 146).” (11)
Destarte, não há por que se deixar de reconhecer o princípio da insignificância no crime de roubo, que incide sobre o bem jurídico patrimônio, sob à alegação de que inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão, pois a repressão do Estado deve-se voltar sobre o crime praticado, constrangimento ilegal, por exemplo, mesmo que outro seja o interesse do julgador.
NOTAS
(1) Sobre o princípio da insignificância, leia-se ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 73/74.
(2) STJ, HC nº 142661/MG, 5ª Turma, Ministra Relatora Laurita Vaz, DJe 28/06/2010. No mesmo sentido, STJ, Resp nº 1159735/MG, 5ª Turma, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 02/08/2010; STJ, HC nº 138761/SP, 5ª Turma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 22/03/2010, entre outros.
(3) Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008,p. 06.
(4) Segundo Alexandre Jean Daoun, “(...) o Direito Penal tem em si intrínseca característica de violência. A punição prevista é a privação de liberdade [chegando, em alguns países, à exterminação da vida]. Assim, diante da incapacidade dos demais ramos do Direito em salvaguardar determinado bem, permite-se sua atuação como medida extrema” (Crimes informáticos e o papel do direito penal na tecnologia da informação. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto. Direito & internet. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 177/178).
(5) Para Franz von Liszt, bem jurídico é o interesse juridicamente protegido pelo Direito (Tratado de derecho penal. Madrid: Réus, 1927, p. 02).
(6) Cf. BRANDÃO, Cláudio. op. cit., p. 113.
(7) “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
(8) “Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa”.
(9) BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 81.
(10) “Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa”.
(11) QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 52.
Marco Aurélio Florêncio Filho, Doutorando em Direito Penal pela PUCSP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife, UFPE. Pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra. Professor da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Criminalista.
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A aplicação dogmática do princípio da insignificância no crime de rouboIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 09, dez., 2010.
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