“Buscamos a verdade. Verdade em relação ao crime que tirou a vida do Padre Gabriel e em relação a todos os outros crimes que pelo nosso Estado e em todo o Brasil continuam sem solução”.
“Queremos manifestar nosso repúdio a todo aquele que no Poder Executivo, Legislativo e Judiciário não cumpre seu papel de cidadão, servidor do povo. Também queremos afirmar que continuaremos lutando pela Justiça, nas organizações populares, na Comunidade, no Sindicato e na Política".
O apelo de Justiça contido nesse manifesto de organizações populares e religiosas do Estado do Espírito Santo continua sem ser ouvido. Deve ser lembrado e meditado no aniversário do assassinato do Padre Gabriel Maire. O crime aconteceu no território da Grande Vitória, em 23 de dezembro de 1988.
Pouco antes de sua morte, o Padre Gabriel prestou declarações, reduzidas a termo, perante a Comissão “Justiça e Paz” da Arquidiocese. Declarou que estava sofrendo ameaças de morte, que tinha medo de ser assassinado, mas que, não obstante esse medo, estava disposto a prosseguir na sua luta, em nome de seu compromisso com o Evangelho de Jesus Cristo.
Tenho gravada na retina, com nitidez absoluta, a imagem de seu rosto, na noite em que nos deu conta das ameaças que estava recebendo.
É mesmo possível que alguém se comprometa com causas populares, com transformação das estruturas políticas e sociais, em nome do Evangelho?
Muitos negam qualquer vinculação entre Evangelho e Política. Chegam mesmo a recorrer a uma frase bíblica para argumentar pela ilegitimidade do engajamento político, sob a luz da Fé Cristã. O texto invocado com freqüência é muito conhecido: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
As teses que contradizem a pretendida separação entre Fé e Política também são muitas. Essas teses querem que a Fé ilumine a Política. Que a Fé faça desabrochar valores éticos e sociais e dê sustentação aos Direitos Humanos.
Jean-François Collange, professor de Teologia Protestante da Universidade de Strasbourg, mostra que, fundamentalmente, o traço de união indissociável entre Cristianismo e Direitos Humanos resulta de que o valor do homem diante de Deus não está nem na cor de sua pele, nem no seu sexo, nem no seu estatuto social, nem muito menos na sua riqueza, mas no fato de que em Cristo ele é aceito como filho de um mesmo Deus.
Isto de cada um, de sua parte, reconhecer-se como filho de um mesmo Pai conduz a uma fraternidade autêntica, base dos Direitos Humanos.
Na Epístola de Paulo aos Romanos, Collange vê expressa, de maneira particularmente incisiva, a afirmação da igualdade e da dignidade de todos os homens.
Não podemos nos esquecer de uma outra passagem bíblica, quando Paulo coloca o homem como templo do Espírito Santo. Esta afirmação é rica de conseqüências. Como um ser que é templo do Espírito Santo, ou seja, que é morada do próprio Deus, pode ser torturado, pode morrer de fome, pode ficar ao desabrigo, pode ser discriminado? Nenhuma violação dos direitos da pessoa humana será coerente com a proclamação do homem como casa de Deus.
Na linha da mais plena filiação cristã dos Direitos Humanos, colocam-se diversos pensadores: João de Oliveira Filho (Origem Cristã dos Direitos Fundamentais do Homem), J. E. Martins Terra (Direitos de Deus e Direitos Humanos), Hubert Lepargneur (A conquista dos Direitos Humanos), Jacques Maritain (Os direitos do homem) e Jean-Marie Aubert (Direitos do Homem e libertação evangélica).
Gustavo Gutiérrez, teólogo latino-americano, num dos seus livros mais famosos, argumenta que é no poço da espiritualidade legada pela tradição judaico-cristã que a Teologia da Libertação encontra suas justificações doutrinárias. Esse poço fundamenta a libertação pela Fé, segundo coloca Gutiérrez. A nosso ver, esse poço dá transcendente consistência aos Direitos Humanos.
Mas não é só nos arraiais cristãos que se pode encontrar uma base religiosa para os Direitos Humanos.
Os maiores troncos religiosos e filosóficos da Humanidade comungam com a idéia de Direitos Humanos. O Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, o Taoísmo, o Confucionismo fecham com as concepções essenciais de Direitos Humanos. O mesmo acontece com o Marxismo, na pureza de suas propostas, e com as tradições religiosas dos povos indígenas da América Latina, que nos interessam particularmente, como latino-americanos que somos.
Por todas estas razões, celebramos a morte do Padre Gabriel como o holocausto de um mártir. No Natal de 2010, vinte e dois após seu assassinato, rememoramos sua vida e a luta que nos legou como herança.
João Baptista Herkenhoff, 74 anos, Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante e escritor. Autor do livro Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, Rio de Janeiro, 2010). E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br
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