Uma das facetas da legalidade, senão a mais importante delas, assenta justamente na exigência de precisão da lei, posto que contribui, ainda que em um certo grau, com o ideal de segurança jurídica.(1) Isso, naturalmente, é decorrência de postulados inerentes ao Estado Democrático de Direito, tais como o da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e, sobretudo, da controlabilidade dos atos jurisdicionais. É pelo respeito à condição do indivíduo como ser humano que o critério racional de legalidade estatui como premissa fundante do sistema jurídico a exigência de que se proporcione ao cidadão o conhecimento acerca do limite a partir do qual a intervenção punitiva estatal não caracteriza ingerência na esfera dos direitos fundamentais. De outra sorte, como refere Hassemer, as leis prescrevem aos juízes as normas de acordo com as quais eles têm que decidir os casos e isso traz a lume a questão da vinculação do juiz à lei, pois é “a vinculação do juiz que autoriza um prognóstico mais preciso do resultado da decisão”. Com isso, a vinculação do juiz a critérios (legais) de decisão é “pressuposto de verificabilidade desta decisão”.(2)
Nessa esteira há que se observar, como refere Albrecht,(3) que o princípio da legalidade tem a importante tarefa de efetivar a legalidade penal no processo penal. Perante a lei penal todos os cidadãos devem ser iguais, a aplicação da lei deve ser previsível, ela deve proteger o cidadão do arbítrio estatal. O princípio da legalidade processual, como refere o jurista alemão, segue estes postulados e, face à sua observância, “exclui-se o arbítrio estatal e cuida-se da segurança jurídica”. Mais especificamente, “cumprindo-se o princípio, satisfaz-se a exigência de uma atuação controlável e previsível do poder estatal”.(4)
Aqui cumpre ressaltar que o processo penal somente é justo se é efetivado em atenção aos direitos fundamentais como direitos de defesa. Nesse sentido, ao legislador descabe utilizar expressões vagas, genéricas, em matéria de processo penal, sobretudo no âmbito das cautelares pessoais, uma vez que recaem sobre o direito fundamental de liberdade.
Entretanto, o art. 312 do CPP estabelece como um dos fundamentos da decretação da prisão preventiva a “garantia da ordem pública”. Ocorre que o emprego dessa expressão, face à sua absoluta generalidade, em nada destoa da famigerada expressão “são sentimento do povo” propalada pelo Estado alemão nazista e que conduziu a uma total inversão do princípio da legalidade, permitindo a prática de teratológicos atos violadores de direitos fundamentais. Isso porque, na medida em que nada especifica, a tudo se presta. Assim, por muito tempo, na doutrina e na jurisprudência pátrias, foram absorvidos por este conceito argumentos como o de “evitar estado de continuidade delitiva”, “acautelar o meio social”, “restabelecer a credibilidade da justiça”, a “gravidade do crime e sua repercussão”, “clamor público”, “restabelecimento da ordem social abalada pela gravidade do fato”.
Esta problemática, inclusive, já foi referida por Mendes, Coelho e Branco, ao ressaltarem que “o conceito de ordem pública é assaz impreciso e provoca grande insegurança no âmbito doutrinário e jurisprudencial, tendo em vista a possibilidade de se exercer, com esse fundamento, um certo e indevido controle da vida social”.(5) No mesmo sentido, na doutrina processual penal refere Aury Lopes Jr. que “por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante”.(6) É indubitável, portanto, que tal expressão não estabelece qualquer critério que permita a controlabilidade do ato jurisdicional de decretação da prisão.
O que se deve ter em vista aqui é que ao legislador se reconhece o poder de conformação dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e a inconstitucionalidade resultará sempre que o legislador ultrapassar a esfera de liberdade de conformação, ou seja, sempre que exceder os limites da discricionariedade.(7) O excesso de poder legislativo, por conseguinte, decorre da violação à proibição de excesso, postulado que, como bem adverte Manfred Seebode, não deve ser deixado de lado, sobretudo na determinação do fim das medidas estatais sobre a liberdade.(8)
Com isso, o legislador não deve produzir ou permitir incongruências no sistema, por meio da criação de regras que afetem (quer suprimindo, quer reduzindo) as garantias dos cidadãos, isso como decorrência do princípio da proibição de excesso que “se revela mediante contraditoriedade, incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins”.(9) Nesse sentido, como referem Hauptmann e Rübenstahl, é imprescindível que a lei seja necessária e adequada e não intervenha de maneira desproporcional no direito fundamental à liberdade geral de ação e à liberdade de locomoção.(10)
Essa ideia corresponde à aplicação corrente do princípio da proporcionalidade como limite às limitações dos direitos fundamentais e, nesse ínterim, deve se orientar pelos critérios da adequação e da necessidade. O subprincípio da adequação exige que as medidas interventivas adotadas se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos, ao passo que o subprincípio da necessidade estabelece que o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Nessa ótica, uma lei será inconstitucional se se puder constatar, inequivocamente, a existência de outras medidas menos lesivas.(11)
Pois bem, a intervenção na esfera do direito fundamental de liberdade por meio de uma cláusula geral absolutamente vaga como a “garantia da ordem pública” implica na ultrapassagem dos limites de discricionariedade que foi outorgada ao legislador e que intervém de maneira absolutamente desproporcional no direito fundamental de liberdade.
Isso, aliás, se evidencia a partir do exame comparativo do § 112 do StPO (CPP alemão). O referido preceito dispõe que “a prisão para investigação pode ser decretada contra o acusado, quando ele é suspeito imediato e existe motivo para a prisão”.
Ante a generalidade da caracterização da expressão “motivo para a prisão” (Haftgrund), o legislador alemão especificou no mesmo dispositivo, na alínea 2, que “há motivo para a prisão, quando, em razão de certos fatos: 1. verifica-se que o acusado é fugitivo ou se mantém escondido; 2. na apreciação das circunstâncias do caso concreto existe o perigo de que o acusado se subtraia ao processo penal (perigo de fuga); ou, 3. o comportamento do acusado fundamente a suspeita imediata de que ele: a) eliminará, modificará, suprimirá ou falsificará meios de prova, ou b) influenciará coacusados, testemunhas ou peritos de forma ilícita, ou c) induzirá outros a tais condutas; e quando, com isso, houver iminente perigo de que a apuração da verdade seja dificultada.”
Ad comparandum, a cláusula de “garantia da ordem pública”, inserida no art. 312 do CPP, não estabelece critérios legais e, por conseguinte, não estatui parâmetros racionais suscetíveis de controlabilidade.
Outrossim, cumpre ter em vista que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 94404/SP, pela Segunda Turma, referiu que “o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência de situação de real necessidade capaz de viabilizar a utilização, em cada situação ocorrente, do instrumento de tutela cautelar penal. Cabe, unicamente, ao Poder Judiciário, aferir a existência, ou não, em cada caso, da necessidade concreta de se decretar a prisão cautelar.” Mutatis mutandis, o modelo legal alemão demonstra de forma clara que as circunstâncias estabelecidas como “motivo para a prisão”, enquanto critérios legais, serão aferidas de forma concreta pelo julgador, nos limites da discricionariedade e, com isso, respeitando os direitos fundamentais dos cidadãos.
Portanto, a cláusula de “garantia da ordem pública” não é adequada para atingir os fins pretendidos com a norma, uma vez que, ao não estabelecer qualquer critério acerca do que caracterize tal fundamento para a prisão preventiva, o legislador excede os limites da discricionariedade que lhe foi outorgada, permitindo, assim, a lesão a direito fundamental.
NOTAS
(1) Não pactuamos do posicionamento propalado em um setor da doutrina, segundo o qual o ideal de “segurança jurídica” seria utopia ou ficção. É crível, e a história das ciências penais comprova isso, que os argumentos radicais em sua plenitude padecem do mesmo vício da carência de racionalidade que os posicionamentos contra os quais se levantam e, para usar uma metáfora de Hassemer, significam o mesmo que combater o diabo com o beuzebu; compare HASSEMER, W. Rechtssystem und Kodifikation, in KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart. C.F. Müller Verlag, 1989, p. 216.
(2) HASSEMER, W. op. cit., p. 221.
(3) O autor fala do princípio da legalidade penal (Prinzip der Strafgesetzlichkeit) e do princípio da legalidade processual (Legalitätsprinzip), compare ALBRECHT, P.-A. Die vergessene Freiheit. Strafrechtsprinzipien in der europäischen Sicherheitsdebatte. Berliner Wissenschaftverlag, 2003, p. 87 e ss.
(4) ALBRECHT, P.-A. op. cit.,p. 88.
(5) MENDES, G.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 2010, p. 770.
(6) LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Lumen Juris, 2009, vol. II, p. 370.
(7) MENDES, G.; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. op. cit., p. 770.
(8) SEEBODE, M. Der Vollzug der Untersuchungshaft. Berlin, De Gruyter, 1985, p. 124.
(9) MENDES, Gilmar F.; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo G. op. cit., p. 409.
(10) Conforme HAUPTMANN, Markus; RÜBENSTAHL, Markus. Zur verfassungsrechtlichen Unbedenklichkeit einer Doping-Besitzstrafbarkeit de lege ferenda – insbesondere gemessen am “Cannabis-Urteil” des BVerfG in HRRS, Heft 4/2007, p. 144.
(11) MENDES, Gilmar F.; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo G. op. cit., p. 409.
Pablo Rodrigo Alflen, Professor do Departamento de Ciências Penais da Faculdade de Direito e da Pós-graduação em Ciências Penais da UFRGS. Professor de Direito Penal e Processual Penal da UNIVATES. Doutorando e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado.
Como citar este artigo: Pablo Rodrigo Alflen. Garantia da ordem pública e violação ao princípio da proporcionalidadeIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 10-11, dez., 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário