Falar em direitos humanos é tarefa sempre espinhosa. De imediato, vêm à cabeça aqueles comentários produzidos em todo canto que remetem à ideia de que “direitos humanos são direitos de bandidos”. De fato, o discurso dos direitos humanos ganha relevo quando precedido de situações denotadoras da violência institucional praticada contra o delinquente. Vale lembrar, entre tantos, o episódio do massacre praticado no ano de 1992 no presídio do Carandiru, em São Paulo, em que a atuação da Polícia Militar paulista deixou um saldo de 111 presos mortos.
Mas no ambiente de constante medo (reflexo da cultura do medo) a que estão condicionadas as pessoas na sociedade moderna, para o que contribui, sobremaneira, boa parte (a parte irresponsável, merece registro) dos mass media, e diante de fatos protagonizados por agentes do Estado, principalmente policiais, que resultam na morte de delinquentes, o discurso dos direitos humanos, distorcido e manejado ao talante de alguns apresentadores de televisão, acaba por se identificar no imaginário da população como um discurso que visa à proteção de criminosos. Daí vem aquela outra máxima, muito utilizada por políticos em tempos de eleição, de que “bandido bom é bandido morto”. E os direitos humanos dão lugar, então, ao arbítrio totalitário contra o homem, bastando, para tanto, que ele seja identificado como delinquente pelo agente do Estado.
Fazendo uma rápida pausa no trato do tema em questão, lembro aqui de situação, não tão rara quanto poderia parecer, de pessoas, inclusive autoridades civis e até mesmo policiais, dessas que questionam implacavelmente os defensores dos direitos humanos, quando se veem vitimados pela violência institucional, seja diretamente ou quando algum amigo ou parente próximo é espancado ou executado arbitrariamente por ação da polícia ou é violentado no ambiente das prisões. Normalmente, ao pedir a punição dos responsáveis, argumentam que seu filho, ou amigo, ou parente próximo, não era bandido, mas se deixou levar por más companhias ou que era apenas usuário de drogas e que não merecia morrer ou sofrer daquela maneira. Poderíamos traduzir: se não era bandido, era gente. Se era gente, deveria ver respeitados os seus direitos humanos. Ou, em outras palavras, poderíamos entender assim o recado: “direitos humanos realmente não devem existir para ‘bandidos’, mas sim para ‘pessoas’, como meu filho, meu amigo ou meu parente próximo”.
E é talvez nesse ponto, retomando o tema proposto, que se apresenta a grande contradição na postura dos críticos dos direitos humanos. Para eles, apenas as pessoas têm tais direitos; o bandido, para os críticos, seria uma outra espécie distinta da humana, alguma coisa autoconstruída, sem pai nem mãe, brotado da rua ou da favela, e, como tal, desmerecedor de direitos humanos. A partir dessa percepção, talvez enraizada naquilo que Carl Gustav Jung definiu como inconsciente coletivo, legitima‑se a violação dos direitos fundamentais daquele que é suspeito ou acusado da prática do crime e dos presos em geral.
Há algo que simboliza bem essa coisificação do delinquente, reduzido a menos que pessoa logo no momento em que se vê suspeito de algum ilícito penal: ao ser detido pela polícia, o delinquente (homem ou mulher, adolescente, adulto ou idoso) é colocado no porta‑malas da viatura, mesmo que esta seja um carro de passeio do tipo popular (Gol, Palio). Se você, que agora lê este artigo, algum dia transportar um passageiro no porta‑malas do seu carro e vier a ser barrado em uma blitz, certamente sofrerá uma severa multa, além da retenção do veículo e da repreensão da autoridade de trânsito. Afinal, passageiro deve ser transportado nos bancos do veículo e fazer uso do cinto de segurança. Entretanto, a regra parece não valer para a polícia, que transporta diariamente passageiros (coisificados) em seus mínimos porta‑malas. A partir da suspeita da prática criminosa, o delinquente deixou de ser humano. É coisa. Não se trata de passageiro da viatura, mas de objeto indesejável, asqueroso até. Eis um primeiro exemplo que bem demonstra essa cultura arraigada na sociedade brasileira e que propugna pela desumanização do delinquente.
Se é normal transportar o delinquente no porta‑malas, também o é torturá‑lo para a obtenção de confissão, mantê‑lo em prisões imundas e superlotadas ao extremo, processá‑lo sem direito a uma boa defesa (em Goiás, sequer há Defensoria Pública), sujeitá‑lo à violência contínua dos espaços altamente degradados dos cárceres brasileiros, sem alimentação decente, sem acesso a medicamentos básicos (“não temos nem dipirona” é o que ouço frequentemente dos diretores de presídios). Enfim, é vista como normal até mesmo a execução do delinquente, seja de forma sumária ou disfarçada em pretensas trocas de tiros nem sempre comprovadas. Pois, como na máxima já citada, “bandido bom é bandido morto”... Desde que não seja o meu filho. Nem o seu.
Como citar este artigo: SILVA, Haroldo Caetano da. Direitos humanos e direitos de bandidosIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 07, dez., 2010.
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