Por Giovana P. Buonicore, João Beccon de Almeida Neto e Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó
A bioética possui o intuito de analisar as questões éticas de determinados temas que surgem na sociedade. À medida que esta se desenvolve e cresce em número, mais complexas se tornam as relações sociais. Novos problemas surgem, bem como novos impasses, em que cada vez mais frequente resta-se destacada a dicotomia entre os interesses individuais frente aos da coletividade. Certamente, um dos nós desse emaranhado é a questão da reificação e, ipso facto, da comercialidade do corpo humano e/ou de suas partes.
Neste diapasão, o direito à autonomia do sujeito imbrica-se como um progresso moral do indivíduo sobre o próprio corpo, servindo de pano de fundo a uma ideia instrumentalizada do corpo humano. Diante dessa realidade, podemos traçar as seguintes questões: será a venda de órgãos e toda a comercialização do corpo um avanço a espera de uma legalização (já que após a laicização, o homem pode dispor do seu próprio corpo como bem lhe aprouver)? Ou, em contrapartida, tal situação, consiste em uma nova forma de exploração da pessoa humana, uma nova roupagem de exemplos históricos vividos por nossa sociedade (como a questão da servidão no sistema medieval ou mesmo a da própria escravidão)?
Em nosso país, a Constituição Federal veda qualquer forma do uso do corpo humano e suas partes como objeto de comércio (artigo 199, § 4º). A mesma disposição pode ser observada na Lei de Doação de Órgãos, artigo 15, prevendo inclusive tipo penal específico para o tráfico de órgãos, com pena de reclusão de três a oito anos mais multa de 200 a 360 dias-multa. O bem jurídico a ser tutelado nesse caso seria a dignidade do ser humano, que não pode ter seu corpo fragmentado e vendido.
Diante do exposto, cabe se perguntar qual é o tratamento jurídico para o corpo como um todo. O corpo humano, no caso o corpo morto, é tutelado da mesma forma que os órgãos que o constituem? Invocam o mesmo bem jurídico? Caso contrário, qual o bem jurídico resguardado em relação ao cadáver?
Como citado anteriormente, há a lei especifica que trata da doação de órgãos, possuindo tipo especifico que veda a comercialização do mesmo, com pena relativamente alta. Já no que tange aos crimes de tráfico de corpos, por não apresentar lei especial própria ou mesmo um tipo legal específico em nosso ordenamento jurídico, a análise reside em uma ausculta do Código Penal, nomeadamente do Capítulo II do Título V, dedicado à questão dos crimes contra o respeito aos mortos (artigos 209-212).
O artigo 209 trata do impedimento ou perturbação de cerimônia funerária, prevendo como pena a detenção de um mês a um ano ou multa. O artigo 210 trata de violação de sepultura e prevê uma pena de reclusão de um a três anos e multa. Tal assunto é abordado sob o viés de uma orientação de origem religiosa na qual o corpo humano animado ou inanimado apresenta-se como algo sagrado. Ao analisar a legislação, o artigo 211 do Código Penal demonstra ser crime destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele, com pena de reclusão de um a três anos e multa.
Por derradeiro, o ultimo dispositivo a ser exposto tipifica o crime de vilipêndio a cadáver, possuindo como pena detenção de um a dois anos e multa.
Portanto, como podemos observar, o crime de tráfico de corpos humanos somente pode ser tipificado no supracitado art. 211 (subtrair), tendo em vista a omissão de uma legislação específica sobre o tema. Ainda, com relação ao tipo, verifica-se que a pena imposta ao crime de tráfico de corpos apresenta-se inferior ao que é previsto para os casos que envolvem o tráfico de órgãos. Por conseguinte, esta situação nos faz refletir sobre o que fundamenta tal disparidade: (a) um reflexo de um comportamento cultural marcado pelo misticismo ou (b) uma metodologia legislativa de eleição de bens jurídicos tutelados que apresentam clara diferença valorativa.
Embora o ser humano seja um ser autônomo, que possui a priori a “faculdade de dar leis a si mesmo” (BOBBIO, 1997, p. 62), essa autonomia é relativizada na forma da lei: o homem não é dono de si mesmo de forma absoluta. Limitação esta, promovida no âmbito estatal, como forma de proteção do próprio ser humano e de garantia da manutenção de sua dignidade, bem como dos valores sociais. Por isso, a nossa sociedade objetiva rechaçar o uso instrumentalizado do homem ao proibir qualquer tipo de comercialidade que envolva corpo humano, órgãos, partes e fluidos.
Até a segunda metade do século XIX, o corpo humano não constava como um termo a ser estudado, inclusive nas enciclopédias jurídicas inexistia o termo “corpo”. Claro que o Direito não desconhecia o corpo humano, só que ele era visto de forma indireta. Por exemplo, o comércio do corpo propriamente dito era analisado como uma instituição econômica e a prostituição como uma violação de costumes, e não como contrato envolvendo o corpo humano (HERMITTE, 1999).
Hoje, todavia, com a evolução tecnocientífica, nomeadamente na área da saúde, associada a um pensar laico, observamos que isto mudou. O corpo humano transforma-se em fonte de matéria-prima para as indústrias farmacêuticas ou é instrumentalizado para fins terapêuticos na medicina. Essa transição, no mundo ocidental, ocorrera de forma relativamente rápida (HERMITTE, 1999).
Não nos parece lógico, considerando o exposto, que o bem jurídico do crime de tráfico de corpos resida como sendo a memorialidade. Na verdade, este delito vai, da mesma forma que a proibição do tráfico de órgãos, de encontro aos valores morais de nossa sociedade, dentre eles a dignidade do ser humano. Nesse diapasão, ambos os crimes deveriam apresentar mesmo nível de proteção e reprovação penal.
Podemos observar que o corpo humano apresenta, digamos assim, uma roupagem descritiva, em que não sobra espaço ao não descrito; uma linguagem sem valores, na qual o que enxergo significa o limite da tutela fomentada, que, no caso dos crimes de roubo ou tráfico de cadáveres, limita-se à memória dos parentes ou, a partir da nossa ótica, à dignidade da pessoa humana. Mas se analisarmos o mesmo crime em relação aos órgãos, observaremos que a tutela transpõe o aparente, deixando o caráter puramente descritivo e entrando no campo da metáfora.
O uso da metáfora procura fomentar destaque ao que é descrito. Assim, podemos inferir que o nosso ordenamento jurídico procura dar maior importância à proteção do crime de tráfico de órgãos em relação ao crime de tráfico de cadáveres, pois, não invariavelmente, ele busca defender, pelo menos de forma mediata, a vida que aquele órgão poderia salvar ou que fora prejudicada permanentemente ou até mesmo ceifada devido a sua extração. Dessa maneira, procuramos defender a existência de uma consonância entre os discursos, e não a sua evidente disparidade, uma vez que não podemos suportar, em um mesmo ordenamento jurídico, situações que denotam, a um mesmo bem, definições antagônicas. Deve, portanto, ficar claro o bem jurídico a ser tutelado de modo a justificar a disparidade desses discursos.
Referências Bibliográficas
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BRETON, David Le. Adeus ao corpo. Antropologia e sociedade. São Paulo: Papirus, 2003.
HERMITTE, Marie-Angele. Comercialização do corpo e dos seus produtos. In: HOTTOIS, Gilbert; PARIZEAU, Marie-Hélène. Dicionário da bioética. Trad. Maria de Carvalho. Portugal: Instituto Piaget, 1999, p. 73/81
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MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal interpretado. 3ª ed. Jurídico Atlas.
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SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem juridico-penal e engenharia genética humana: contribuindo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: RT.
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Giovana P. Buonicore
Acadêmica da Faculdade de Direito da PUCRS. Bolsista de iniciação científica do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais pelo programa PIBIC/CNPq.
João Beccon de Almeida Neto
Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista pela CAPES. Pesquisador associado do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais do Instituto de Bioética da PUCRS.
Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista pela CAPES. Pesquisador associado do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais do Instituto de Bioética da PUCRS.
Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó
Professora da Faculdade Biociências da PUCRS. Doutora em Filosofia – ênfase em Bioética. Coordenadora do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais.
Professora da Faculdade Biociências da PUCRS. Doutora em Filosofia – ênfase em Bioética. Coordenadora do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais.
Boletim IBCCRIM nº 215 - Outubro / 2010.
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