segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Aritigo: Ações neutras - algumas notas corretivas para o debate brasileiro

Por José Danilo Tavares Lobato

Após considerável atraso, os penalistas brasileiros começaram a se familiarizar com o tema da participação criminal por meio de ações neutras. Em 2002, surge, no Brasil, artigo(1) apresentando o tema e, em 2004, Greco publica o primeiro livro,(2) em língua portuguesa, sobre esta temática e traça um panorama crítico da doutrina estrangeira, além de trazer sua concepção sobre a questão. Deste período até 2010, houve o surgimento de poucos estudos, podendo ser destacadas duas publicações. A primeira consiste em artigo(3) no qual se delineia um debate crítico nosso com Greco, enquanto que a segunda contribuição refere-se ao segundo livro(4) do tema, com a exposição de nossa visão sobre o problema da participação criminal por meio de ações neutras.
Apesar da baixa quantidade de estudos produzidos pelos penalistas brasileiros, a problemática que envolve as ações neutras já se constituiu como pauta obrigatória em sala de aula, em especial no aprendizado do concurso de agentes. Por outro lado, na pós-graduação, a participação criminal por meio de ações neutras tem sido frequentemente recordada, mesmo que de forma lateral e acessória, nos estudos do crime de lavagem de capitais.(5)
É inegável que nestes oito anos houve avanço. No entanto, este avanço é recente e seu desenvolvimento ainda se encontra limitado pela baixa quantidade de material produzido em língua portuguesa e ao não domínio do idioma alemão pela maior parte dos estudiosos brasileiros. Estes fatores explicam o porquê de um tema tão instigante e tão presente no cotidiano das pessoas não ter tido a devida atenção pela Ciência Penal brasileira.
Na Alemanha, o estudo das ações neutras teve origem, em 1985, a partir de acórdão do Supremo Tribunal Federal alemão prolatado no julgamento de participação criminal dos empregados de uma determinada empresa no delito de sonegação fiscal cometido por seu dono.(6) Como noticia Wohlleben, neste acórdão, cunhou-se o conceito de “ações externamente neutras”,(7) o que desencadeou uma série de estudos por inúmeros penalistas alemães nestas últimas décadas.
Não há como negar a importância de se desvelar os limites do permitido e do proibido de ações cotidianas, profissionais, rotineiras, ou seja, daquilo que se denomina como ações neutras. É o princípio da legalidade penal que está em pauta. Trata-se de uma questão de assegurar e preservar um dos pilares fundamentais do Estado de Direito.
Os questionamentos que envolvem a punibilidade de uma participação criminal por meio de ações neutras causam de per si perplexidade. Punir aquele que apenas exerce a sua profissão?! Ou então, como é possível punir aquele que exerce um direito ou cumpre uma obrigação contratualmente válida?!
Em verdade, estas dúvidas vêm sendo o canto da sereia para se estudar as ações neutras. Por meio destes questionamentos, o tema ganhou, aos poucos, espaço nos debates orais dos penalistas brasileiros. Pode-se atribuir a estas formulações o mérito de ter concedido sopro de vida, no Brasil, a tão relevante, mas pouco pesquisado tema. Não obstante o mérito, importa realçar o desacerto destas formulações. O equívoco destes questionamentos sedimenta o estudo das ações neutras a partir de falsas premissas. A formulação correta não consiste em saber se uma participação criminal por meio de ações neutras é punível ou não. Há um erro metodológico a ser superado nesta questão.
A pergunta fundamental reside em saber se há ou não condutas neutras. Existem ações neutras em si mesmas? Ou as condutas somente podem ser avaliadas dentro de determinado contexto fático? A resposta é tão simples quanto intuitiva. Não apenas as condutas de autoria, mas também de participação estão sempre inseridas em um contexto fático. Toda análise dogmático penal da ação deve levar em consideração o mundo valorativo que a cercava no momento de sua prática.
A necessidade de se avaliar a presença do dolo para determinar a tipicidade é ponto incontroverso na Ciência Penal. Pode-se até polemizar sobre o conteúdo do dolo, mas se encontra consolidado o entendimento de que a tipicidade objetiva é insuficiente para a afirmação do fato típico criminal. A recusa da responsabilidade penal objetiva é uma conquista liberal, ou melhor, é garantia ao direito fundamental de liberdade que não pode ser esquecida pelo Estado de Direito. Neste tocante, não custa recordar que a tipicidade da participação criminal encontra-se vinculada ao preenchimento das regras da homogeneidade do elemento subjetivo e da acessoriedade ao fato principal. Ou seja, não há que se pensar em qualquer conduta de participação criminal fora do contexto da ação principal.
É curioso, todavia, que, no debate das ações neutras de auxílio, de indução e de instigação, procure-se inverter a sistemática da teoria geral da participação criminal. A questão fundamental reside em saber se há razão que justifique a assunção de uma nova metodologia na resolução do problema das condutas acessórias neutras. A resposta devida a este questionamento é negativa. O próprio conceito cunhado pelo Supremo Tribunal Federal alemão já deixava claro que apenas de antemão, isto é, a primeira vista, as ações seriam neutras. Se assim não fosse, as ações seriam internamente neutras e não externa ou aparentemente neutras.
A contextualização da ação do partícipe é inevitável para aferir a sua tipicidade. A desconsideração da Teoria Geral da Participação Criminal é um equívoco. Seria justificável ao proprietário da arma ou de uma escada emprestá-la e alegar em seu benefício o exercício de seu direito de propriedade, mesmo sabendo que o tomador do empréstimo irá utilizar o objeto para fins criminosos?! Ou o chaveiro pode, a partir da invocação de seu direito constitucional ao trabalho, justificar sua conduta de produzir a cópia de chave com consciência de que seu cliente irá valer-se da mesma para furtar a residência alheia?!
Resta claro que os partícipes abusam, respectivamente, de seu direito de propriedade e de seu direito ao trabalho. Os limites de tais direitos constitucionais foram ultrapassados. Estes direitos e tais como outros direitos não são absolutos. Se o direito de liberdade fosse absoluto, dificilmente haveria qualquer participação criminal punível, uma vez que o partícipe não domina a ação e nem pratica a nuclear típica.
Outras notas seriam dignas de serem feitas. Contudo, optou-se por traçar apontamentos de base e necessários a serem observados no desenvolvimento deste debate. A preservação da metodologia utilizada na solução das questões tradicionais da participação criminal é imprescindível para que não se logrem resultados teratológicos no campo das ações neutras.

Notas
(1) PEREIRA, Flávio Cardoso. Ações Cotidianas no Âmbito da Participação Delitiva. Porto Alegre: Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, 2002.
(2) GRECO, Luís. Cumplicidade através de Ações Neutras. A Imputação Objetiva na Participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
(3) LOBATO, José Danilo Tavares. Cumplicidade por Meio de Ações Neutras - O Início (tardio) de um Debate. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 64. Rio de Janeiro: Espaço Jurídico, 2005.
(4) LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria Geral da Participação Criminal e Ações Neutras - Uma Questão Única de Imputação Objetiva. Curitiba: Juruá, 2009.
(5) RIOS, Rodrigo Sánchez. A Temática da Lavagem de Capitais e o Recebimento de Honorários por parte do Advogado Criminalista. Boletim IBCCRIM, Ano 18, N. 214. São Paulo: IBCCRIM, 2010.
(6) WOHLLEBEN, Marcus. Beihilfe durch äusserlich neutrale Handlungen. Munique: Beck, 1996. p.3.
(7)Äusserlich neutrale Handlungen”. WOHLLEBEN, Marcus. op. cit., p.3.

José Danilo Tavares Lobato
Doutor em Direito pela UGF. Mestre em Direito - Ciências Penais pela UCAM. Defensor Público/RJ. 


Fonte: LOBATO, José Danilo Tavares. Ações neutras: algumas notas corretivas para o debate brasileiro. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 216, p. 14, nov., 2010.

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