O tema do aborto ganhou protagonismo na reta final da campanha eleitoral. Isso é tão surpreendente, considerado o marasmo das discussões sobre direitos sexuais reprodutivos nos tempos de vida política normal no Brasil, quanto inoportuno, considerada a forma rasteira, covarde e leviana com que tem sido incorporado pelas agendas de campanha. O resultado deste processo é um vazio “show da vida”, tão ludibriador quanto perigoso.
É ludibriador porque obscurece as muitas e relevantes questões políticas, filosóficas e jurídicas que são debatidas, há pelo menos meia década, por acadêmicos de diversas áreas que têm dedicado ao aborto a devida atenção. Tais questões, se fossem trazidas a público por meio de um debate honesto e qualificado, ajudariam a esclarecer as relações e limites entre os muitos direitos constitucionais, fundamentais e pétreos necessariamente pertinentes ao tema - tanto os do feto quanto, e principalmente, os da gestante.
Seria fundamental que se desembaraçassem as três dimensões distintas do problema, que aparecem confusas e indistintamente reunidas no grande balaio do aborto, tal qual tem sido oferecido ao grande público.
A primeira diz respeito à valoração que cada indivíduo pode ter em relação à opção de uma mulher pelo aborto. Essa valoração é emoldurada por crenças religiosas e princípios morais de cada um, tanto os da gestante quanto os de quem a julgue. Por isso, é questão de foro íntimo, e cada um deve ser livre para ter a opinião que lhe sirva a consciência.
Tal questão não se confunde com uma apreciação crítica da atual legislação sobre o aborto enquanto política pública. Quem é “a favor da vida em todas as suas dimensões”, tomando emprestada a expressão da moda, pode, sem qualquer contradição, reprovar a um só tempo tanto a opção de uma mulher pelo abortamento, por valorar a vida do feto, quanto a atual legislação sobre o aborto, por valorar a vida e a saúde das milhares de gestantes que recorrem a insalubres, quando não fatais, clínicas clandestinas que praticam rotineiramente o aborto sem serem admoestadas - nem pela polícia, nem pela fiscalização sanitária.
Finalmente, há uma terceira questão, que paira sobre as duas primeiras, respeitante à legitimidade de o Estado incorporar uma específica linha valorativa no tocante à escolha de uma mulher pelo abortamento, linha essa derivada de uma particular orientação filosófico-religiosa que prega a superlatividade da vida fetal em relação ao direito de autonomia da gestante. A questão aqui, distinta das outras duas, é saber como o tema do aborto pode ser tratado com o devido respeito à autonomia política e moral de cada pessoa, bem como à legitimidade de se negar esta autonomia a alguém, como a nega o Estado brasileiro ao impor a todas as mulheres uma determinada valoração sobre o valor da vida fetal.
Separadas essas três dimensões do problema, o passo seguinte deveria ser tratá-las sem obscurantismo religioso ou oportunismo eleitoral. Cada uma delas traz diferentes questões à tona, as quais nos permitiriam depurar as crenças e intuições que temos sobre o aborto e refletir sobre possíveis mudanças a esse respeito na legislação penal, que no espaço de uma geração já será vergonhosamente centenária, porque o debate a seu respeito não se permite evoluir.
Fosse isso feito, poderíamos, finalmente, tratar seriamente de temas prementes como: o grau de proteção que o ordenamento jurídico dá à vida pré-natal - que já foi enfrentado na ADIN 3510 (Lei de Biossegurança), mas não especificamente em relação ao feto; o impacto de tecnologias médicas posteriores a 1940 sobre as circunstâncias em que se permite o aborto, como nos casos de anencefalia detectável por corriqueiros diagnósticos de imagem; o direito de abortamento independentemente de permissão judicial para casos em que a saúde da gestante esteja em perigo, mesmo que ela não corra risco de vida (pois o Código só admite expressamente esta última hipótese); ou ainda a regulamentação técnica dos abortos na rede pública de saúde, que hoje expõe a gestante, sobretudo nos casos provenientes de estupro, a procedimentos indignos.
Nada disso tem sido debatido, e, assim, a opinião pública permanece ludibriada. Pior, entretanto, é a maré legislativa perigosamente retrógrada que se ensaia para o futuro, e que periga repercutir sobre questões mais amplas do que o aborto. O “show da vida” tem reavivado um fundamentalismo político-religioso que agora cobra dos candidatos à Presidência, ostensivamente, um pacote de moralidades que restringe direitos não só de mulheres, mas também de outras minorias, como homossexuais. Na premência de uma disputada campanha eleitoral que será decidida por uma cabeça, os candidatos comprometer-se-ão à reedição do Index Librorum Prohibitorum se assim lhes for exigido pelo moralismo atrasado que hoje se vê perigosamente fortalecido.
O ludibriador e perigoso “show da vida”. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 216, p. 01, nov., 2010.
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