sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Artigo: O novo estupro e a sua interpretação pelos tribunais superiores

Por Matheus Silveira Pupo





Com o advento da Lei 12.015/2009, o artigo 213 do CP teve sua redação bastante alterada. A partir daí, os delitos que recebiam o nomen iuris deestupro, o qual punia a conjunção carnal não consensual, e atentado violento ao pudor, que sancionava a prática dos outros atos libidinosos violentos, foram reunidos em um único crime igualmente denominado deestupro (artigo 213, caput, do CP), com a seguinte redação, “constrangeralguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Inaugurou-se, com essa modificação, um verdadeiro dissídio na doutrina sobre, se esse delito, em sua nova redação, seria um crime de tipo misto alternativo,(1) de tipo misto cumulativo(2) ou, ainda, com apenas um único núcleo.(3)
Tal distinção ganha importante relevo quando o agente, em um mesmo contexto fático, excluindo-se a hipótese do prelúdio do coito, realiza as condutas que eram antevistas nos artigos 213 e 214 do CP, pois, neste caso haverá ou crime único, ou concurso material de delitos. Além disso, tal diferenciação também importa no eventual reconhecimento de crime continuado.
A primeira corrente, em apertada síntese, defende que o estupro tem sua estrutura formada pelos citados dois núcleos (reunião da conjunção carnal violenta e atos libidinosos forçados), sendo que a prática de qualquer das condutas descritas já é suficiente para a sua tipificação. Mas, se o agente eventualmente realizar mais de uma das ações, num mesmo cenário e contra a mesma vítima, haverá um único delito. Ademais, se forem realizadas repetidas condutas em contextos diferentes, mas nas mesmas circunstâncias de locus, tempus e modus operandi, será possível o reconhecimento do crime continuado.
Por outro lado, para a segunda vertente, na verdade, existiria uma reuniãoimprópria de mais de um crime num mesmo dispositivo legal. Em outras palavras, “há disposições legais que contêm, independentemente, mais de uma figura típica de delito, ou seja, nas quais há tipos acumulados. Neste caso, haverá sempre concurso, em caso de realização de mais de um tipo”,(4)ou seja, realizando-se os dois constrangimentos acima citados existirão dois delitos em concurso material. Além disso, por se tratarem de condutas diversas, malgrado estarem dentro de um mesmo dispositivo, não será possível o reconhecimento do crime continuado entre as condutas dos antigos artigos 213 e 214 do CP.
Por derradeiro, há ainda os que defendem “que o novo artigo 213 CP descreve e estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e tal conduta de constrangimento tem como objeto material uma pessoa (alguém), que, por sua vez, deve ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso”.(5)
O Supremo Tribunal Federal foi a primeira corte a se pronunciar acerca desta questão. Com efeito, no HC nº 86.110/SP e no HC nº 99.295/SP, ambos da lavra do Ministro Cezar Peluso, a Segunda Turma, em seção que contou também com a participação dos Ministros Celso de Mello, Joaquim Barbosa Ellen Gracie, por unanimidade de votos, entendeu que o artigo 213 do CP descreve uma única conduta, qual seja, o constrangimento a prática de atos libidinosos de qualquer espécie. A Turma, portanto, perfilou-se à terceira corrente.
Mas, além disso, textualmente declarou-se que a indigitada alteração legislativa removeu o óbice ao reconhecimento do crime continuado,mesmo quando houver concurso entre os antigos estupro e atentado violento ao pudor.
Depois disso, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no HC nº 144.870, relatado pelo Ministro Og Fernandes, acompanhado pelos Ministros Celso Limongi, Haroldo Rodrigues, Nilson Naves Maria Thereza, por unanimidade de votos, sem se aderir expressamente a quaisquer das correntes acima apontadas, admitiu que “a figura do atentado violento ao pudor, não mais conta como um tipo autônomo. Ao revés, a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal, também constitui estupro”. Portanto, haveria crime único quando o agente, contra a mesma vítima, perpetrasse uma pluralidade de conjunções carnais, de atos libidinosos ou, até mesmo, destas duas condutas. Aqui, aliás, a reiteração de ações somente importará na fixação da pena-base.
E, além disso, reconheceu-se que, por se tratar de inovação que beneficia o réu, “sua aplicação, em consonância com o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável, há de alcançar os delitos cometidos antes da Lei nº 12.015/2009”.
Com um entendimento diametralmente oposto, a Quinta Turma daquela mesma Corte, no julgamento do HC nº 104.724, no qual figurou como relator para o acórdão o Ministro Felix Fisher, em que também votaram os Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Laurita Vaz, Jorge Mussi Arnaldo Esteves de Lima, por maioria de votos, entendeu que o delito do artigo 213 do CP é um tipo misto cumulativo e, por consequência, se o agente realizar os dois núcleos nele previsto (a conjunção carnal e os atos libidinosos), no mesmo contexto fático, exceto na hipótese de prelúdio do coito, estará praticando mais de um crime em concurso material.
Além disso, com exceção dos Ministros Jorge Mussi e Arnaldo Esteves,(6)a Turma também compreendeu ser impossível o reconhecimento de crime continuado entre tais ações, “em razão da impossibilidade de homogeneidade na forma de execução entre a prática de conjunção carnal e atos diversos de penetração”. Em outras palavras, somente incidirá o artigo 1 do CP quando o agente praticar ou várias conjunções carnais violentas, ou inúmeras condutas que eram antevistas no revogado artigo 214 do CP, mas nunca no caso destes dois comportamentos em concurso (p. ex., a hipótese de penetração vaginal e anal).
Em que pesem os entendimentos diversos, o estupro é um evidente crime de tipo misto alternativo.
Afinal, este delito nada mais é do que uma forma especial de execução doconstrangimento ilegal, antevisto no artigo 146 do CP. E “constranger é o verbo principal, condutor do objeto e dos demais verbos dependentes do primeiro. Em ambas as construções, o agente constrange alguém, sob o meioviolência ou graveameaça, a duas possíveis condutas, associadas pela partícula alternativa ou. Logo, aquele que constrange outrem, violentamente, a deixar de fazer o que a lei permite e, na sequência, a fazer o que a lei não manda, comete um único crime de constrangimento ilegal. Não há que se fugir da mesma interpretação, no tocante ao crime de estupro. O agente que constrange alguém, violentamente, a manter um ou mais atos libidinosos, no mesmo cenário, à mesma hora, pratica um único delito de estupro. Lembre-se que a conjunção carnal não passa de um ato libidinoso, logo, não se constitui em objeto completamente dissociado da segunda possibilidade elencada no artigo 213 (outro ato libidinoso)”.(7)
Outrossim, é bom destacar que os dois comportamentos antevistos na mencionada norma penal tutelam em igual proporção a dignidade sexual; na verdade, há apenas exemplificação de duas maneiras diferentes de se agredir o referido bem jurídico; tanto isso é verdade que, se o dispositivo simplesmente tipificasse o ato sexual não consensual, não haveria qualquer mudança no alcance da incriminação do estupro.
Justamente por ser assim, é frágil o argumento daqueles que defendem que o estupro é um crime misto cumulativo. Explica-se: reconhecer que no artigo 213 do CP há uma reunião imprópria de dois crimes distintos significa aceitar que as condutas ali descritas causam diferentes lesões àdignidade sexual, o que é um raciocínio pueril frente ao próprio texto da norma, o qual expressamente considera a conjunção carnal um ato libidinoso.
De outra banda, é bom frisar que a reforma do Título VI do CP também afastou o óbice ao reconhecimento do crime continuado entre as condutas antes previstas nos revogados artigos 213 e 214 da Lei Substantiva Penal.
Pois bem. O artigo 71 do CP estabelece que poderá ser reconhecida a mencionada ficção jurídica quando o agente praticar mais de um crime de mesma espécie nas mesmas condições de tempo, lugar e modus operandi.
Antes do início da vigência da Lei 12.015/2009, majoritariamente, entendia-se que não era possível o reconhecimento da continuidade delitiva, porque estas condutas estavam previstas em dispositivos legais diferentes.(8)
No entanto, agora que foram reunidas em um único tipo penal, não existe mais o obstáculo ao reconhecimento deste benefício quando estiverem preenchidos os requisitos legais.
Aliás, apenas para exemplificar a incoerência daqueles que entendem ser impossível o reconhecimento da continuidade delitiva na espécie, posição que é, diga-se de passagem, a majoritária no âmbito da 5ª Turma do STJ, pode-se comparar as seguintes hipóteses: A) o agente que pratica uma conjunção carnal violenta e outro ato libidinoso não consentido, em contextos diferentes, mas nas circunstâncias do artigo 71 do CP, segundo tal corrente, estará praticando dois crimes em concurso material (ou seja, com as penas somadas); B) o agente que constrange duas pessoas a praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal, nas circunstâncias do artigo 71 do CP, mesmo para aqueles que defendem ser o estupro um crime misto cumulativo, cometerá estes crimes em continuidade delitiva (ou seja, será aplicada a pena de apenas uma infração, porém, majorada).
Como se percebe, nas duas hipóteses, a lesão ao bem jurídico dignidade sexual é semelhante. Sendo assim, não há razão para que o tratamento imposto ao agente seja tão diferente, sob pena de se ferir o princípio da igualdade (artigo 5.º, caput, CF). Afinal, “ao ditame legal é interdito definir disciplinas diversas para situações equivalentes”.(9)
Em suma, malgrado não ter sido a intenção do legislador, a reforma feita pela Lei 12.015/2009 é mais benéfica ao Réu. Esta é a realidade atual! Por isso, não podem os operadores do Direito, máxime as Cortes Superiores, fechar seus olhos para essas mudanças apenas para manter uma antiga tradição de punição muito severa para os crimes sexuais, a qual, como visto,não tem mais qualquer amparo legal. 

Notas
(1) NUCCI, Guilherme de SouzaCrimes Contra a Dignidade Sexual, Revista dos Tribunais, 2009; JESUS, Damásio E. Estupro e Atentado Violento ao Pudor, crime único ou concurso material?, Carta Forense, dez. 2009.
(2) GRECCO FILHO, VicenteUma interpretação de duvidosa dignidade, disponível em http://www.epm.sp.gov.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=2859, acesso em 3 de setembro de 2010; DELMANTO, Celso et. al.Código Penal Comentado, Saraiva, 8. ed., 2010.
(3) PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. O crime de estupro e a Lei nº 12.015/2009: um debate desenfocado, Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 203, p. 02-03, out. 2009.
(4) FRAGOSO, Heleno CláudioLições de Direito Penal - Parte Geral, 16. ed., Forense, 2003, p. 194.
(5) PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. ob. cit., p. 2.
(6) Observe-se que no HC nº 160.288, na lavra do Min. Arnaldo Esteves, j. 18.05.2010, a Quinta Turma, malgrado ter denegado a ordem, curiosamente reconheceu de maneira expressa que “a reforma procedidapermitiu reconhecer-se a continuidade delitiva em favor de agente condenado, na vigência da lei anterior, aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, desde que atendidos os requisitos do artigo 71 do CP, em observância ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica”.
(7) NUCCI, Guilherme de Souza. Estupro, Legalidade e Política Criminal,Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 18, n. 214, p. 7, set. 2010.
(8) STJ, HC 102.362/SP; HC 86.860/CE; HC 85.034/SP; HC 80.969/SP; AgRg no Resp 838.743/RS; STF, HC 95.413/SP; HC 94.504/RS; HC 91.370/SP; HC88.466/SP.
(9) BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Malheiros, 3. ed., 17. tir., 2009, p. 10.

Matheus Silveira Pupo

Coordenador-adjunto do Núcleo de Jurisprudência do IBCCRIM. Advogado criminalista.


PUPO, Matheus Silveira. O novo estupro e a sua interpretação pelos tribunais superiores. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 216, p. 12-13, nov., 2010. 

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