Luiz Flávio Gomes
Ficamos todos chocados com a prática “abestada” (para usar uma palavra corrente nas últimas eleições presidenciais) denominada de “rodeio das ou de gordas”.
A evolução civilizatória do ser humano parece que nunca consegue mesmo se pautar por um crescendo linear. Deveria reinar aqui o princípio da vedação de retrocesso. Mas as coisas não se passam dessa maneira.
Damos dois passos para frente, mas logo em seguida vem outro para trás. Ainda que seja só por brincadeira (de mau gosto), foi uma aberração sem tamanho promover uma “competição” onde os “universitários” (no caso, da Unesp) agarravam suas colegas obesas, para nelas montar (quando possível), devendo permanecer o maior tempo possível sobre elas. Um cronômetro registrava o tempo da humilhação. De brincadeira isso tudo não tem nada. A coisa foi muito séria.
Tiririca diria: “coisa de abestados!”. No mínimo: uma iniciativa claramente equivocada, eticamente horrorosa, que deve ser castigada de acordo com o devido processo, o mais pronto possível (respeito ao direito de defesa, contraditório etc.).
Não se trata de postular uma perseguição típica dos tempos da inquisição contra os autores da indecente façanha, mas isso não pode (evidentemente) ficar impune.
Essas práticas contrárias ao crescimento ético do ser humano não poderiam ser repetidas. A Universidade tem que agir com o rigor necessário (sem se afastar do justo).
O “rodeio de gordas” retrata, de um lado, a bestialidade (animalidade) inerente ao ser humano e, de outro, um desrespeito profundo aos direitos humanos e à ética. Numa única “competição” conseguiram reunir violência biológica ou natural (agressividade inerente ao ser humano, sobretudo como demonstração da virilidade masculina), violência machista ou de gênero (montar ou trepar é o papel que caracteriza o macho em relação à fêmea), violência de identidade (coligada aos nossos medos quanto à imagem corporal), violência escolar (universitária), que configura o chamado bullying (que significa valentão). Quanta bestialidade num só evento, e ainda com direito de publicidade universal, pelo Orkut!
O caso requer sanções administrativas (escolares), civis (indenizações) e, eventualmente, penais (especialmente porque algumas meninas teriam ficado só de calcinha).
O mais triste é saber que tudo aconteceu com alunos de uma escola pública (esclarecidos!). Já se nota arrependimento num dos organizadores do evento (R.N.), que fez proposta no sentido de se organizar um encontro anual no campus universitário para tratar da violência contra a mulher.
Sem prejuízo das sanções cabíveis, nos parece uma sugestão que deveria ser levada em conta, para reafirmar (de forma contundente) os valores éticos de respeito ao semelhante.
Nós, seres humanos, somos distintos dos animais (das plantas e dos minerais) porque contamos (dentro de certas medidas) com o que se chama liberdade. Os animais não podem alterar seus códigos biológicos.
Fazem somente o que estão programados naturalmente para fazer. Não podem ser reprovados nem aplaudidos, porque não sabem se comportar de outro modo (F. Savater). Ou seja: não contam com autodeterminação.
Os seres humanos também somos programados, mas paralelamente à constituição biológica também contamos com uma programação cultural. Em razão da nossa autodeterminação, “sempre podemos optar finalmente por algo que não esteja no programa.
Podemos dizer “sim” ou “não”, quero ou não quero. Nunca temos um só caminho a seguir. Temos vários” (Savater). Premissa básica: não podemos fazer tudo que queremos. Não existe liberdade sem limites e sem responsabilidade.
Embora dentro de certos parâmetros, podemos inventar e eleger (em parte) nossa forma de vida. E também podemos nos equivocar. A essa arte de viver chamamos de ética que, na verdade, não significa apenas a “arte de viver”, senão a “arte de viver humanamente” (respeitando nossos semelhantes, os direitos humanos, os valores básicos de convivência etc.). Tratar nossos semelhantes como “animais” significa ferir profundamente os preceitos éticos que norteiam nossa existência.
Uma coisa é lutar pela sobrevivência, estando isolado em uma ilha (que foi o caso de Robinson Crusoé, criado por Daniel Defoe, em 1719). Outra bem distinta é viver em comunidade (ou seja: “con-viver”). A partir do momento em que um outro ser humano aparece na “ilha”, não há como não tratá-lo como um semelhante. E jamais você pode fazer com os outros o que gostaria que não fizessem com você.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). www.twitter.com/ProfessorLFG. www.blogdolfg.com.br.
Fonte: O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 21/12/2010.
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