O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) votará no início de março um conjunto de medidas que promete mudar radicalmente o andamento dos processos criminais no país. Apelidado de Pacote Penal, o Plano de Gestão para Funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal cria procedimentos padrões que terão de ser adotados pelos juízes no tratamento das ações penais.
As medidas são abrangentes e trazem regras para todas as etapas do processo: desde como um juiz deve tratar um processo que tramita sob sigilo até o controle de prazos para que as ações criminais não durem longos anos até sua conclusão. “A ideia é dar celeridade às ações e corrigir deficiências no Código de Processo, que irá completar 70 anos”, afirma o conselheiro Walter Nunes, coordenador do grupo de trabalho que redigiu o plano, formado por sete juízes.
Uma das deficiências apontadas por Nunes é o uso da fiança no sistema processual. De acordo com o plano do CNJ, a fiança deve ser admitida para diversos tipos de crime, “especialmente os mais graves e de ordem financeira”. O conselheiro afirma que a modificação é necessária porque, na prática, ao determinar que o crime inafiançável, a legislação prejudica a vítima.
O conselheiro explica o motivo. No furto, por exemplo, o juiz pode estabelecer fiança e o acusado responde ao processo em liberdade. Já o homicídio é crime inafiançável, mas o réu pode responder à ação em liberdade até a decisão definitiva de condenação, salvo em casos excepcionais, como nos de acusados violentos. Ou seja, no crime de menor gravidade a Justiça tem uma garantia que pode ser usada até para ressarcir os prejuízos da vítima. Já no crime mais grave, essa garantia não existe porque a fiança é proibida.
Um exemplo que escancara essa distorção é o caso do jornalista Pimenta Neves, que matou a ex-namorada Sandra Gomide a tiros em agosto de 2000. A lei garante que ele responda ao processo em liberdade até a decisão final, sem qualquer garantia. Os pais de Sandra entraram com pedido de indenização da Justiça Cível e tiveram de pedir uma ordem para bloquear os bens do acusado diante de notícias que ele iria vendê-los. Se houvesse a possibilidade de fiança, nada disso precisaria ser feito. A Justiça já teria exigido fiança de Pimenta Neves e, ao final do processo, o juiz poderia usar a garantia para indenizar os pais de Sandra Gomide.
Pena negociada
Há outros pontos polêmicos nos projetos que, depois de aprovados pelo CNJ, serão encaminhados ao Congresso Nacional. Um deles é o que permite que o Ministério Público negocie a pena com os acusados que colaborarem com as investigações de crimes. O instrumento é usado corriqueiramente em países como Itália, França e Estados Unidos, muito retratado em filmes americanos e séries como “Law and Order”, mas ainda engatinha no Brasil.
De acordo com o projeto do CNJ, quando o réu de crimes praticados sem violência ou grave ameaça ajudar a esclarecer os fatos, poderá haver redução de um a dois terços da pena. Nos demais crimes, a redução será de um sexto a um terço do tempo de condenação. “Em tese, a ideia é boa. É justo que haja previsão de redução da pena para quem admite que cometeu um crime e ajudou a esclarecê-lo. Mas o bom funcionamento do sistema dependerá de como ele será regulamentado”, afirma o especialista em processo penal e professor livre-docente da Universidade de São Paulo, Maurício Zanoide.
Outro projeto prevê que o condenado que cumpre pena em regime aberto poderá usar pulseira ou tornozeleira eletrônica para ficar em prisão domiciliar. De acordo com Walter Nunes, é consenso entre os juízes criminais que obrigar as pessoas a passar a noite nas chamadas casas de albergados, junto com outros condenados, além de não ajudar na ressocialização, alimenta a criminalidade. “A possibilidade de a pessoa voltar a cometer crimes é muito menor quando ela passa as noites em casa”, afirma Nunes.
O professor Zanoide considera que o monitoramento eletrônico é uma medida salutar. Mas ressalta que precisa ser feito sem humilhação e por meio de um sistema que não coloque em risco a vida do condenado que cumpre pena em regime aberto: “O aparelho que permite o monitoramento tem de ser discreto. O Estado quer controlar a pessoa, não expô-la publicamente”.
O CNJ também elaborou projeto que prevê a apreensão antecipada de bens que pertencem a membros do crime organizado. A venda desses bens seria usada, entre outras coisas, para financiar um sistema de proteção a juízes ameaçados por criminosos. Outras propostas organizam melhor o uso de videoconferência em interrogatórios, instituem incentivo fiscal a empresas que contratarem egressos do sistema penal e regulamentam o direito de o preso provisório votar nas eleições.
Manual de instruções
Além dos projetos, o grupo coordenado por Walter Nunes elaborou um Manual Prático de Rotinas para ajudar os juízes criminais a organizar seus gabinetes e os processos sob sua responsabilidade. Em um dos capítulos do manual, por exemplo, é explicitado que pessoas podem ter acesso a processos que tramitam em segredo de Justiça — questão que costuma causar muito estranhamento entre juízes e advogados. O manual cria normas padronizadas até mesmo para o transporte desses processos.
Outro capítulo do manual orienta os juízes sobre como tratar os pedidos de interceptação de conversas telefônicas, mais um freqüente ponto de atrito entre o Judiciário e a advocacia. Este capítulo ganha especial importância diante do fato de que diversos processos acabam anulados no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal porque juízes não cumpriram à risca as regras para colocar suspeitos sob escuta.
O texto lista os requisitos legais que devem ser observados para a determinação da quebra de sigilo telefônico, ensina como deve ser o controle das interceptações e esclarece por quanto tempo os juízes podem manter os telefones de um investigado grampeados: o prazo é de 15 dias, prorrogáveis por igual período quando comprovada a necessidade da prova. O manual aponta que uma decisão do STF admite a possibilidade de sucessivas prorrogações, desde que a decisão seja fundamentada em fatos novos da investigação.
Até o dia 18 de fevereiro, o Plano de Gestão para Funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal e o Manual Prático de Rotinas estão disponíveis para consulta pública no site do CNJ.
O coordenador do trabalho, Walter Nunes, afirma que o CNJ decidiu colocá-lo em consulta para que associações de juízes, membros do Ministério Público e advogados possam opinar. E também para evitar as recorrentes reclamações de que o Conselho não ouviu essa ou aquela categoria antes de editar suas resoluções e enviar seus projetos para o Congresso. Nunes lamenta que, até agora, houve poucas sugestões. “Mandei ofício a todas as associações e tribunais, e também para diversos juristas. Obtive poucas respostas”, afirma.
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Último Segundo. 01/02 - 19:03 - Rodrigo Haidar, iG Brasília
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