terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Artigo: “Quem é você? adivinha se gostas de mim?"


I.Fecho meus olhos e vejo um julgamento. Nele miro os jurados – o julgamento é na corte popular – sentados à frente da defesa; o acusado sem algemas, sob escolta triplicada pelo uso das submetralhadoras (logo me indago transportando-me para a posição de julgador: será um acusado mais perigoso se algemado, ou se escoltado por canhões?) veste trapos amarelos, quase fosforescentes.
Acusação e juiz de direito batem amistoso papo enquanto o oficial de justiça me entrega a lista de cidadãos sorteáveis, já com indicações de dispensas a pedido.
Sorteados um a um, vão se recusando jurados, alguns conhecidos, outros não, enquanto alguns fazem cara feia como se realizássemos (as partes) julgamento onde os elementos de nossa escolha, ou recusa, não passassem de seus próprios nomes, sexo e profissões, além de um muito pouco possível contato anterior em outro julgamento.
Entregues pronúncia (em regra, a decisão que remete o acusado a julgamento) e breve relatório do procedimento, os jurados lêem, atentamente, o que ali escrito; é-me estranho o fato do legislador, ao tentar extirpar do júri as indevidas influências opinativas de maus-juízes, ainda ordene aos jurados a leitura dessas mesmas opiniões(1).
Iniciada a instrução, ordena o juiz presidente: seja trazida a testemunhalilás.
Jurados atônitos, o rareado público do júri é retirado da sala.
Entra a testemunha, curiosamente de cútis não lilás, e se senta no banco. O acusado já foi retirado da sala, quando inicia sua inquirição o promotor de justiça, após preliminares indagações do presidente: “Fique sabendo estar seu nome protegido, assim como seu endereço, e apenas o advogado de defesa poderá revelar seu nome ao acusado. Assim, caso ocorra algo com o senhor (a) a culpa não será do poder público, e sim responsabilidade da Defesa!”.
A inquirição é realizada, o acusado foi levado à carceragem e não é possível consultá-lo, senão com breve abandono da sessão, e não tão breve assim.
Vêm as testemunhas rosaazulpérola; até as gregas aparecem: ômega ebeta.
Terminada a inquirição, retorna o acusado à sala de julgamento. Indaga: “E aí doutor? O que elas disseram?”.
Os jurados olham desconfiados, quase com setas assertivas nos olhares:“o advogado deve estar revelando quem são as testemunhas!”
Passei, num estalar de dedos, de advogado de defesa, para abstrato cúmplice em futuro crime. Meu ato é condenado, e nem estou sendo julgado.
De repente, a indagação corrosiva: “Doutor, quem são essas pessoas? Já briguei muito na vida e essas pessoas podem querer me prejudicar, por algum motivo. Podem ter sido familiares delas ou amigos, ou elas mesmas, que cometeram o crime. Sou inocente doutor. Sou inocente”.
Quando a defesa passa a ser julgada por trocar informações com seu cliente, o Ministério Público instiga o medo e não fiscaliza o gozo dos direitos individuais, testemunhas têm o respaldo do anonimato e esse se torna fardo da defesa e não do Estado – titular do Poder-Dever de punir e de resguardar a plena defesa –, o que fazer?

II.Antes de qualquer outro comentário, vale lembrar que políticas de segurança pública e Justiça são incompatíveis – valiosa, sobre isso, a lembrança do grande penalista, o min. Nelson Hungria“Quando a política entra pela porta, no recinto do Tribunal, a Justiça se vai pela janela, a buscar os céus”.
Completam-se, todavia, caso caminhem sozinhas e sóbrias para atingirem a propositura constitucional da paz social, de sociedade organizada e justa; devem trocar informações, unificar dados, mas não cegar seus membros e seduzi-los a exercer papel que não lhes particular. Delegado não julga, investiga; juiz não investiga, julga; promotor de justiça não investiga, verifica o trabalho policial (controle externo), até esse evoluir em eficácia e idoneidade, para então colher tais frutos e posteriormente se propor a reproduzi-los, diante do juiz de direito. A equação não é tão complexa.
Para embaralhar um pouco mais esse caleidoscópio de cegos entendedores, o Governo Federal promulgou lei (Lei 9.807) visando proteger testemunhas de delitos cometidos por organizações criminosas, bem como de vítimas e integrantes arrependidos (delação premiada).
No afã de equacionar os problemas existentes – no que lhe compete fazer – a E. Corregedoria Geral de Justiça, órgão vinculado ao Tribunal de Justiça de São Paulo, editou e publicou, há quase uma década, normatização administrativa, dispondo sobre atos como o sigilo dos dados de testemunhas, em crimes hediondos. Deixando de lado observações acerca da competência da E. Corregedoria Geral de Justiça para normatizar procedimento, com base e vinculação a tipos penais específicos, parece, grosso modo, ser bastante salutar a cautela, que em nada interfere nos direitos e garantias individuais do cidadão processado e no exercício de sua defesa.
A norma, contudo, ganha contornos dantescos a cada dia, face sua má aplicação; seria, segundo a Portaria em destaque, de caráter principalmente administrativo (alteração do local em que se depositam os endereços das testemunhas), mas se torna processual e agressivo às garantias individuais, pelo fato dos Juízes de Direito estarem retirando dos autos o nome das testemunhas acusatórias, e deixando a mercê da Defesa, a responsabilidade de informar ou não, aos acusados, quem lhes acusam.
Assim agindo, nossos Juízes, ansiosos por combater o crime, deixam a respeitável e nobre Corregedoria Geral de Justiça em maus lençóis, bem como a si.

III.O preâmbulo da portaria, da lavra do então i. Corregedor Geral de Justiça é cristalino ao afirmar o motivo legal, hierárquico e imediatamente superior para a confecção da Portaria 32/00 da CGJ/TJSP: Considerando que a lei determina a adoção de medidas de proteção às vítimas e testemunhas, especialmente aquelas expostas à grave ameaça ou que estejam coagidas de colaborarem com a investigação ou processo criminal (...).
O art. 3º do referido Provimento indica as providências a serem adotadas, após reclame das testemunhas, pela Autoridade Policial: “As vítimas e testemunhas coagidas ou submetidas à grave ameaça, em assim desejando,não terão quaisquer de seus endereços e dados de qualificação lançados nos termos de seus depoimentos. Aqueles ficarão anotados em impresso distinto, remetido pela Autoridade Policial ao Juiz competente juntamente com os autos do inquérito após edição do relatório. No Ofício de Justiça, será arquivada a comunicação em pasta própria, autuada com, no máximo, duzentas folhas, numeradas, sob responsabilidade do escrivão”.
O art. 7º, inc. IV é tratante de similar matéria, mas já quando sob análise judicial: “Os dados pessoais, em especial os endereços de vítimas e testemunhas, que tiverem reclamado de coação ou de grave ameaça em decorrência de depoimentos que tenham prestado ou devam prestar no curso do inquérito ou do processo, após o deferimento da autoridade competente, devem ser anotados em separado, fora dos autos, arquivados sob a guarda do Escrivão do correspondente Ofício de Justiça, com acesso exclusivo aos Juízes de Direito, Promotores de Justiça e Advogados constituídos ou nomeados nos respectivos autos, com controle de vistas”.
Da simples leitura, nasce a óbvia indagação: de onde nasceu, senão do imaginário freudiano-punitivo, a permissão legal para se excluir o nome de testemunhas e vítimas do processo? Mais óbvia a intenção, impossível: dificultar-se-á o conhecimento de endereços e dados qualificativos das testemunhas, e só isso.
Como citamos no breve intróito, juízes, após denúncias ministeriais, e, promotores de justiça, após o recebimento de inquéritos policiais, criaram essa aberração jurídica; o caso dos magistrados parece muito mais grave: recebem denúncias sem nomes de testemunhas, arroladas por números ou apelidos dados por escrivães de polícia ou estagiários de direito, e se diga, alcunhas de muito mau gosto.
A meu sentir a magistratura paulista, tanto criticada pelo seu trato com os direitos e garantias individuais – Sepúlveda Pertence, um dos grandes ministros da história do STF asseverou há tempos: “Os severos Tribunais paulistas!” – se encontra, hoje, em situação compatível a da metáfora dePedro Vergara, aquela sobre os elefantes que nas antigas guerras se voltavam contra seus próprios exércitos: juízes de primeiro grau têm adotado medida inexistente no mundo processual legal, fazendo parecer que o Tribunal de Justiça, por seu Corregedor Geral, é competente para legislar em matéria processual penal (ou em qualquer matéria processual).
Ou se dirá que impedir um cidadão de saber quem o acusa, não é ato processual a gerar efeitos constritivos aos direitos individuais?
Alguns profissionais, entusiastas dessa péssima aplicação (e lembro o argumento por respeito à dialética) afirmam que o direito do cidadão-acusado é sim resguardado, por se ofertar à Defesa a consulta dos nomes das testemunhas.
Tal argumento é da profundidade de um pires.
Primeiro, pois, à defesa nada se oferta: a defesa é essencial para reclamar aos cidadãos, as garantias da lei (Charles-Alexandre Lachaud). Demoramos como sociedade mais tempo para descobrir a essencialidade da ampla defesa, que para a descoberta da gravidade. Tão elementar uma, como a outra; a maçã cai e o homem acusa desde sempre; porque a maçã cai e a necessidade de defesa, eis reais conquistas humanas!
Por segundo, por não ser o profissional da defesa remunerado para exercer, também, a função de juiz de direito. É obrigação do Poder Judiciário resguardar e aplicar a Constituição Federal, principalmente no tocante às garantias do cidadão; deve o juiz zelar pelo devido processo legal e a defesa, pelos argumentos de prova contrários a apresentar. Fazemos hora extra ao reclamarmos como reclamou Lachaud.
O mais grave decorre de ambas as observações anteriores.
Não é necessário citar doutrinadores para afirmar o que amplamente sabido: a ampla defesa consiste na comunhão do exercício pleno, tanto da autodefesa, como da defesa técnica.
Ora, como ficar a encargo da defesa decisão sobre informar ao acusado quem lhe acusa?
A pedra de toque da discussão parece ser essa: se a defesa técnica decidi omitir ao acusado o nome de quem o acusa, como este exercitará sua autodefesa, informando ao juízo se a “testemunha sigilosa” é sua inimiga capital, parente, ou até, alguém com motivos para ter cometido o delito? Como, sob a ótica da autodefesa, se contraditará um desconhecido?
É impossível.

IV.Há muito o gracejo forense sobre quem nossos maiores doutrinadores em matéria criminal(2), leva ao riso e à reflexão.
É de assustar a situação em que nos percebemos. Porquanto estejamos nos judicializando, se esteja debatendo quem será o próximo ministro do Supremo Tribunal Federal, sua idade e se devemos ou não extraditar um italiano, o jogo judicial cotidiano não é percebido, não merece atenção nem do povo brasileiro, nem de sua imprensa.
Estamos vivendo dentro de nosso Supremo Tribunal diuturnamente (e falo da comunidade brasileira como um todo, não apenas da jurídica), estamos acompanhando seus julgados, suas discussões e até bate-bocas, mas ainda não temos a mínima noção de nossos direitos e garantias individuais; se essa observação estiver equivocada, tanto pior: na verdade podemos estar sendo seletivos, preconceituosos, com nossas noções de direitos e garantias individuais.
Ora, não imagino acusação de homicídio contra o Presidente da República, sob as lentes da TV Justiça, com as seguintes assertivas: “A testemunha Azul-Escuro afirmou ter o Presidente da República...”; “A testemunha PERSEPHONES afirmou que a primeira-dama...”.
Nesse nosso pequeno filme, a defesa reclama ao ministro instrutor que revele ao Presidente da República quem a testemunha. A resposta:
- Se quiser, conte o senhor! O crime de homicídio é grave e qualquer coisa que acontecer com a testemunha, será sua a responsabilidade”.
Também não vejo esse julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Por sorte, os Desembargadores paulistas também não conseguem visualizar essa cena antológica de injustiça e têm desmantelado condenações e processos em que tenha se adotado tão ficta prática.
Stanley Kubrick, em seu memorável Laranja Mecânica afirmou, nos anos 70, estarmos vendendo nossos direitos e garantias individuais por uma falsa sensação de segurança.
O que leva nossos magistrados de primeiro grau a aplicarem o Provimento 32/00 da CGJTJ/SP de forma a impossibilitar a defesa de cidadãos, é um grande mistério envolto na possibilidade desses julgadores intentarem lutar contra o crime, proteger testemunhas ou satisfazer ânsias pessoais.
Ou quem sabe então, ainda dentro do mesmo pacote, estejam esperando um novo Código de Processo Penal Brasileiro, legiferado e sancionado por sua Corregedoria Geral de Justiça.
Nesse mundo de faz de conta, tudo é possível, e não se entende mais nada.

NOTAS

(1) Talvez um bom exemplo de meus tempos de aprendiz no Júri: certo magistrado, em suas decisões de pronúncia (quase nunca de impronúncia), concedia muito raramente ao acusado o direito de aguardar o julgamento em liberdade, mas sob a condição deste “não voltar, naquele ínterim, a delinqüir”. Todos se perguntavam: como os jurados recebiam isso, senão como o juiz-presidente da sessão afirmando ter sido o réu autor da prática delitiva?
(2) Reza o anedotário ser nosso maior penalista, um argentino (min. Raul Zaffaroni) e nosso maior processualista, um tcheco (Franz Kafka) – os fatos tratantes nesse texto firmam o posicionamento processual da anedota. Particularmente, concordo também com o posicionamento penal da anedota.


Thiago Gomes Anastácio, Advogado.


Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010.

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