Entrevista com Alexandre Morais da Rosa, juiz de Direito de Santa Catarina, doutor em Direito e professor do Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI - SC).
Que formas pode assumir a escuta de crianças e adolescentes no Sistema de Justiça?
A escuta pode assumir diversas formas. O que se dá, de regra, é que se confunde o direito de falar com o dever de falar, e surgem mecanismos aparentemente mais brandos, os quais, sob a alegação de diminuir a violência, no fundo servem como mecanismo paliativo de desencargo, como diria Jacinto Coutinho, ou seja, "terceiriza- se" o trabalho sujo para um técnico, como acontece no Depoimento sem Dano. A escuta precisa se dar por profissionais capacitados e que aceitem o exercício da violência própria da palavra. Mas o que se deve perguntar, de fato, é: justifica-se, mesmo, que a criança e o adolescente sejam ouvidos judicialmente? A resposta é: nem sempre.
Como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata a questão da escuta de crianças e adolescentes no âmbito judiciário?
O ECA reconhece que, em questões que lhe digam respeito, o adolescente seja ouvido. A questão é saber em que lugar ele pode ser ouvido. Ele pode ter sobre seus ombros a escolha sobre uma adoção, uma guarda, sobre o ato infracional? Não se pode, ao mesmo tempo, esquecer-se das especificidades da escuta, nem levar a verdade enunciada como a tradução, pari passu, do desejo. Enfim, entre o bem-dito e o mal-dito, há um silêncio que diz. Mas isto somente para quem pode escutar. Para o orgulho e aparentemente consciente sujeito da modernidade e do Direito, isto parece estranho.
Como o psicólogo pode se inserir nessa escuta?
Judicialmente, existe a possibilidade de emitir laudos, pareceres, dentro do que o Código de Ética preconiza. O que ele não pode é ser instrumento (como diz Michel Foucault) de um gozo escópico alheio, enfim, ser instrumento de um lugar que não quer saber do sujeito, mas de condenar criminalmente outro. Ocupar este lugar é complicado porque este é o lugar do Canalha, diria Lacan.
Quais são as diferenças entre escuta e inquirição?
Uma escuta respeita o tempo e as necessidades de pontuação, de luto, de significação. Enfim, respeita o sujeito. A inquirição parte da ficção de que o sujeito seria capaz de responder linearmente todas as indagações, pois acreditam numa concepção de Verdade metafísica e, cabe dizer, esquizofrênica, própria do Direito. Inquirir, no caso, é uma fraude à subjetividade.
Quais são os principais problemas da forma como se dá a inquirição? Como eles poderiam ser resolvidos?
Não há fórmulas mágicas. O que há, de plano, é que não se indaga a Verdade, mas verdades possíveis e que se fundem num processo judicial, no qual ficção e realidade, entendida como os limites simbólicos do sujeito, precisam de uma pontuação. Assim, caso os atores envolvidos tiverem uma formação mais adequada, creio ser possível respeitar-se os sujeitos e não os tratar como objetos produtores de significantes.
Em que consiste o Depoimento sem Dano? Qual sua opinião sobre ele?
O DSD é uma alternativa que virou regra, pela qual o juiz, promotor e advogado, transferem a um psicólogo ou assistente social, enfim, um terceiro, a responsabilidade, indelegável, de sugar da criança e do adolescente os significantes necessários à condenação de alguém. Dentre os diversos problemas, cabe pontuar que nem sempre é necessária esta oitiva, não é possível uma atuação ética do terceirizado, bem assim nada garante que não se produza dano. Perceba-se que se organiza um cenário aparentemente brando para se buscar, com abuso de confiança, o que já se sabia, pois o DSD é um espetáculo paranóico, no sentido de que a verdade já é dada e o procedimento é apenas uma confirmação. Por isso, sou contrário.
Que papel é atribuído ao psicólogo no Depoimento sem Dano?
Um instrumento de um poder e finalidade que não são de seu saber.
Qual seria a alternativa ao DSD para o depoimento de crianças na Justiça?
Nem sempre é preciso ouvir a criança. Quando é, os profissionais (do Direito) devem ser qualificados sobre como se indagar.
Como lidar com casos em que a criança não quer testemunhar e não há provas físicas de um suposto abuso?
Vários membros da Rede de proteção podem ser ouvidos. Isto é um argumento - falta de punição - de quem mostra sua face: está mais preocupado com a punição do que com a criança. Ela não quer ou não pode falar. Em nome do que ela não é respeitada?
O que significa falar em Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente?
Um modelo em que o Juiz não ocupa o papel de protagonista. A rede de proteção é formada por diversos órgãos e programas que se respeitam e dialogam entre si. A falta de cultura nesta modalidade é o problema.
Fonte: CRP-RJ
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