Uma vistoria no presídio de segurança máxima de Dourados, em Mato Grosso do Sul, revelou uma realidade considerada grave pelo Conselho Nacional de Justiça. Os índios da região são acusados e condenados por práticas que, muitas vezes, não são consideradas criminosas em sua cultura. A informação é de O Estado de S. Paulo.
A metade dos índios presos nessa unidade é acusada de manter relações sexuais com menores de idade. Pelas leis dos brancos, a conduta é tipificada como estupro presumido, com pena de até 12 anos de prisão. Pelas regras dos índios, algo considerado normal. Essa diferença cultural não é levada em consideração pelos juízes do Estado. Mesmo quando a suposta vítima diz que está casada por livre e espontânea vontade, o índio acaba condenado, com base no Código Penal.
Alguns dos índios presos nem sequer sabem do que estão sendo acusados. "O maior problema que enfrentamos é o julgamento do índio como se ele fosse do nosso meio e compreendesse todo o nosso ordenamento jurídico", afirma o procurador da República Emerson Kalif Siqueira. Segundo o Estatuto do Índio, os juízes devem atenuar as penas de índios condenados por infrações penais, e sua aplicação deverá levar em conta o grau de integração cultural dos acusados.
A legislação também autoriza índios condenados a cumprir pena em regime de semiliberdade, em postos da Funai. Mas os índios acabam dividindo espaço com presos acusados, em muitos casos, de crimes graves, como tráfico de drogas, sequestros e homicídios.
Diante dos pedidos da defesa para que cumpram pena em postos da Funai, os juízes respondem não conceder o benefício porque os índios já estariam culturalmente integrados, por já usar celular e calça jeans ou por portar título de eleitor. "Nossos operadores do direito não conhecem e não querem conhecer a legislação que trata dos direitos dos índios", reclama o advogado Wilson Matos, da etnia terena. Ele foi designado defensor de muitos dos réus depois que a Justiça impediu, temporariamente, procuradores da União de participar dos processos. No total, de acordo com o procurador da República, 59 índios estão presos atualmente em Dourados.
O juiz federal Roberto Lemos, que comanda o mutirão carcerário em Mato Grosso do Sul, afirma que os magistrados deveriam aferir se, dentro da comunidade, aquela conduta é criminosa e se o índio tem capacidade de compreender que o ato é ilegal. "É fundamental que, ao deparar com acusações de ações criminosas imputadas a índios, de imediato, os juízes determinem uma perícia antropológica", afirma Lemos.
O novo estatuto dos povos indígenas, em tramitação na Câmara dos Deputados, torna obrigatória a perícia antropológica para saber se o índio acusado tem ou não consciência de que o ato praticado é ilegal. Pela proposta, apenas juízes federais poderão julgar processos contra índios.
O texto prevê também que os índios tenham direito a intérpretes durante as audiências judiciais, uma forma de evitar mal-entendidos em razão do desconhecimento que alguns têm da língua portuguesa. Dentre os presos em Dourados, alguns tinham dificuldade de se expressar e não sabiam explicar as razões de sua detenção.
Crimes por disputa de terra
Além do estupro presumido, outro crime que leva muitos índios aos presídios de Mato Grosso do Sul é o homicídio. Parte dos assassinatos é cometida por disputa de poder entre as diferentes etnias que habitam a área indígena demarcada no Estado. Entre elas, terena, guarani e caiuá. Outra parcela, mais numerosa, é praticada por índios em elevado grau de aculturação. Além disso, a proximidade com o tráfico de drogas e com o contrabando de armas pela fronteira com o Paraguai contribui para o aumento da criminalidade entre os índios.
De acordo com estudo publicado em 2008 pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o aumento da criminalidade decorre da falha no processo de demarcação e pressão exercida sobre a população indígena por conta da expansão econômica na região. O presidente da Funai, Márcio Meira, concorda: "Certamente a falta de terras é um fator muito importante. Os índios guaranis precisam ver resolvidos seus direitos à terra tradicionalmente ocupada."
Revista Consultor Jurídico, 1º de novembro de 2009
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