A Lei da Anistia de 1979, eis que voltada exclusivamente aos opositores da ditadura militar, constituiu inegável marco da democratização do País. Com ela, a nação principiou por se reconciliar com a pátria. Um longo percurso que culminou com a Constituição Federal de 1988, compreendido, porém, num processo histórico inacabado: a pátria ainda não se reconciliou com a nação. Sabe-se que a Lei da Anistia foi concebida no contexto do regime de abertura gradual e controlada pela ditadura militar que, nela, enxergava um bom caminho para eximir-se das suas contas para com a nação. À lei promulgada, deu-se por esperteza supor, ex parte principis e de modo farsesco, também o autoperdão à violência institucional praticada pelos agentes da repressão fardados de Estado, e não apenas a garantia de solo seguro às suas vítimas. Mas, no plano normativo, a ninguém é dado perdoar-se a si mesmo. A mensagem escondida na leitura esperta desses usurpadores do Estado é que a violência que praticaram pode ser facilmente esquecida. A tortura, o desaparecimento forçado, e toda sorte de tratamento desumano, degradante e cruel cometidos com recursos, equipamentos e proteção do próprio Estado, tudo foi e segue sendo possível, útil e perdoável quando do apagar das luzes de uma ditadura. Nesse olhar oportunista, a dignidade de cada pessoa humana e o próprio Direito cedem à conservação do poder, onde e quando for necessário. Basta de arranjos. Chamado pela sociedade civil a interpretar a Lei da Anistia e decidir sobre o seu alcance, o Brasil tem, no julgamento da ADPF 153 pelo STF, a oportunidade histórica de afirmar o processo político brasileiro conforme o Estado de Direito, recusando, por contrário à sua essência, o autoperdão e a violência como práticas do Estado e que, como sabemos, nada mais são que a negação da dignidade da pessoa humana e a negação da própria política. Por certo, o que se reclama não é a revisão da Lei da Anistia. Bem ao contrário, o que se quer é sua consagração enquanto Direito. Trata-se de ofertar a ela a devida interpretação ex parte populi, conferindo-lhe o real sentido e alcance à luz dos preceitos fundamentais da Constituição e da normativa internacional dos direitos humanos. Nisto não se compreendem, por óbvio, os cálculos hermenêuticos elaborados pela ditadura militar e sua estratégia de abertura sob controle. No texto e contexto constitucional que integram o espaço próprio, superior e privilegiado da reflexão jurídica da ADPF, não há, por impertinência temática, oportunidade para a oposição de argumentos extraídos dos diversos subsistemas do Direito, bloqueando-lhe a eficácia. Deste modo, questões como as indenizações civis ou a prescrição penal não têm pertinência e relevância para o julgamento da ação, obstando-lhe o curso e o mérito. O direito internacional contemporâneo – ao qual também estamos vinculados – repudia a tortura e qualifica os crimes de violência institucional contra a humanidade, declarando-os imprescritíveis. Aliás, a própria natureza da prescrição penal é de um instituto democrático de limitação do direito de punir, em favor do cidadão e contra o Estado, e não uma causa antirrepublicana de inimputabilidade dos agentes da repressão política ou, por outra, uma causa de afirmação do direito de torturar e silenciar para, logo após, perdoar-se a si próprio. Que as vítimas da ditadura fazem jus às indenizações civis, disto não se duvida. Mas, isso não é suficiente para a afirmação coletiva do repúdio aos crimes da ditadura militar, e nem à comunicação dos valores democráticos às futuras gerações. É na esfera do Direito Constitucional e do Direito Penal que o sentimento da nação se afirma, conduz e se reconcilia com a pátria. A oportunidade está dada, e não é lícito desperdiçá-la. A nação tem a possibilidade de, verdadeiramente, assenhorar-se de sua história, e de reconhecer em cada pessoa humana a condição de efetivo sujeito de seu destino. Dizer deste desejo do cidadão um ressentimento é, mais uma vez, um ato de desqualificar a política e ignorar o sofrimento das vítimas. O verdadeiro e nefasto ressentimento nasce desta frustração, do perpétuo adiar em nome do conserto político que não existiu, e não na vontade da verdade. O IBCCRIM, que tem por compromisso institucional a defesa do Estado Democrático de Direito e dos direitos humanos, manifesta sua convicção na legitimidade política e no rigor técnico da proposta de interpretação contida na ADPF 153. Ao lado de tantas outras entidades e vozes da sociedade civil brasileira, o IBCCRIM espera e acredita na única resposta possível: a Lei da Anistia não alcança e não se aplica aos agentes da repressão política da ditadura militar de 1964, cujos crimes ainda reclamam apuração devida e punição legal. É chegada a hora de elucidar o Brasil.
Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009
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