quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Artigo: Facções criminosas, “estados paralelos” e pluralismo jurídico

É comum que a abordagem midiática, ao tratar do fenômeno das facções criminosas, faça referência a “Estados paralelos”, o que, contudo, não encontra amparo em uma investigação empírica, constituindo apenas um jargão alarmista que contrapõe de forma absoluta tais agrupamentos à ordem formal, ou seja, ao Estado de Direito. Trata-se de discurso que impõe o rótulo de inimigo sobre os agrupamentos tachados como organizações criminosas, transformando-os no local da barbárie social, o que tem o condão de justificar políticas supres­so­ras de direitos fundamentais, aos modos da doutrina do direito penal do inimigo.
Uma análise mais aprofundada das facções permite a conclusão de que as práticas de poder que delas decorrem não podem ser entendidas como paralelas à ordem formal, mas simbióticas. É problemática a dicotomia entre o formal e o informal, especialmente quando se faz referência à prisão, local onde se criaram e atuam de forma mais evidente as facções. Na prisão, as técnicas disciplinares legais e extralegais conjugam-se em uma complexa rede de relações de poder chamada de “o carcerário” por Foucault(1).
Essa simbiose pode ser verificada de forma mais ostensiva na infiltração de membros de facções nas estruturas estatais e na corrupção de policiais e agentes de segurança. Há, contudo, uma dimensão mais sutil que diz respeito à dinâmica com que se dão as relações de controle. O caráter falacioso do suposto poder total exercido pela administração de um presídio sobre seus internos já constava das análises de Sykes(2). Nessa esteira, uma vez que a instituição penal é estruturalmente incapaz de dominar completamente a massa de internos, a administração é induzida a abrir-se às lideranças informais dos presídios, negociando e fazendo concessões, a fim de manter um nível satisfatório de controle sobre a população sob sua responsabilidade.
A constatação de que não se justifica tratar o fenômeno das facções como correspondente à fundação de “Estados paralelos”, contudo, não significa afirmar que as facções não tenham se tornado polos normativos diversos do Estado, resultando no que Boaventura de Souza Santos nomeou pluralismo jurídico, ou seja, a vigência, no mesmo espaço geopolítico, de mais de uma ordem jurídica, oficial ou não(3). Nesse sentido, citam-se as regras de conduta entre os internos impostas pela própria comunidade de presos (o proceder), as contribuições pagas pelos membros à facção (a caixinha), os julgamentos informais (os sumários) e a execução de penalidades levadas a cabo pelos próprios presos (os justiçamentos).
A temática do pluralismo jurídico surge na obra de Santos a partir de pesquisa realizada em uma favela carioca à qual o pesquisador atribuiu o nome fictício de Pasárgada(4). Seu olhar debruçou-se sobre a existência de regras não-oficiais tidas como legítimas e respeitadas pela comunidade, sendo tal direito informal gerido pela associação de moradores. Tais regras diziam respeito principalmente a questões envolvendo a posse da terra, tendo a comunidade desenvolvido seus próprios meios de solução de conflitos, dada a impossibilidade de acesso às instâncias oficiais. Santos sustenta que os moradores da favela eram submetidos a um “estatuto de ilegalidade”, uma vez que a habitação dava-se de maneira clandestina, restando afastada, portanto, sua tutela pela via do direito estampado nos códigos. A essa comunidade, aliás, o Estado voltava apenas sua face repressiva, por meio de ações policiais violentas. A adesão a regras informais, portanto, consistiu na solução encontrada pela comunidade a fim de colocar termo à violência gerada pela autotutela. Visto que os interesses dos moradores não eram acolhidos pelo direito estatal, a submissão ao estatuto da ilegalidade ligava-se à indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação social, estimulando a comunidade, portanto, à criação de um direito adequado às suas necessidades de regulação e controle.
Ao analisarmos os fatores colocados por Santos na gênese de uma situação de pluralismo jurídico – a inexistência do acesso às instâncias oficiais decorrente de uma ilegalidade existencial –, resta impossível não concluirmos que o ambiente carcerário constitui um local extremamente favorável à criação de um direito paraestatal, ainda que, conforme já visto, não necessariamente paralelo – porque simbió­tico – à estrutura formal.
Se Santos identificou, em relação aos moradores de uma favela, a imposição de um “estatuto de ilegalidade”, decorrente da situação de clandestinidade da ocupação do solo, quando se tem em vista a comunidade carcerária, com muito mais razão observa-se tal capitis diminutio na medida em que o estigma de criminoso (ilegal) é atribuído ao interno do estabelecimento de forma explícita, seja pela condenação criminal, seja pela mera instauração de processo ou inquérito.
A construção da identidade delin­quen­te no indivíduo preso distancia a comunidade carcerária do acesso aos meios formais de tutela dos interesses, quedando o ambiente carcerário relegado ao império de normas informais. Desse modo, o indivíduo preso, entendido em teoria como sujeito de direitos da execução penal, converte-se, na prática, em mero objeto da execução, sem voz e sem acesso à tutela dos direitos que lhe são nominalmente conferidos.
É nesse contexto, em que a lei e a Cons­tituição carregam uma vasta gama de direitos que não podem ser pleiteados formalmente pela comunidade carcerária, dada a barreira instransponível da falta de acesso à justiça, que o cárcere torna-se um terreno fértil ao surgimento de uma situação de pluralismo jurídico. As organizações sociais de presos, polos de produção normativa informal, surgem como resposta a uma política de Estado genocida, fruto de uma cultura de controle que se baseia em uma ideologia meramente neutralizante, despreocupada com o exercício dos direitos fundamentais na execução penal. Assim como fora identificado por Santos em Pasárgada, a prisão – como a favela – é um ambiente onde o Estado esconde sua “face providência”, denegando o acesso a direitos sociais, e revela-se apenas como instrumento de imposição da violência. Nessa esteira, parece causar pouca perplexidade que a situação de pluralismo jurídico propiciada pelas facções tenha se instaurado nos estabelecimentos penais e alcançado as favelas, lugares onde as leis dos códigos dificilmente se aplicam. Assim, em suma, uma política criminal destinada a fazer frente à questão das facções não deve ter como fundamento a repressão, mas sim, a superação das barreiras do acesso à justiça.
NOTAS
(1) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. port. de Raquel Ramalhete. 28ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 243-253.
(2) SYKES, Gresham M. The society of captives: a study of a maximum security prison. New Jersey: Princeton, 2007, pp. 40-62.
(3) SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: Souto, Cláudio e Falcão, Joaquim (orgs.). Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. 2ª ed. São Paulo, Pioneira, 1999, pp. 87-96, p. 87.
(4) SANTOS, Boaventura de Souza. op. cit.



Bruno ShimizuDefensor Público do Estado de São Paulo. Mestrando em Criminologia pela USP.

Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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