Assunto nebuloso em nosso ordenamento jurídico.
Atualmente, de acordo com o entendimento majoritário da doutrina, estaríamos diante de um crime. A eutanásia é considerada homicídio ou auxílio ao suicídio, posição exageradamente formalista. Existem alguns julgados de Tribunais estaduais no sentido de que o homicídio piedoso ou por compaixão (eutanásia) configuraria um homicídio privilegiado, isto é, homicídio com pena diminuída. Compartilhamos com a posição da doutrina moderna, no sentido de que o enfoque puramente formal da questão merece ser totalmente revisado.
A eutanásia (do grego eu, bem ou bom; e thanatos, morte) costuma ser definida como boa morte, isto é, a morte que ocorre de forma suave e sem dor. Pode ser perpetrada tanto ativamente (eutanásia ativa) como através da mera omissão (eutanásia passiva). A eutanásia passiva é também denominada de ortotanásia (do grego orthos, normal, correto e thanatos, morte), já que consiste precisamente na morte dada ao seu tempo, no momento justo, quando já não é possível fazer mais nada pela vida do paciente e o respeito à dignidade humana impõe que a equipe médica deixe de intervir, permitindo que a morte siga seu curso natural. A eutanásia passiva ou por omissão consiste na abstenção deliberada da prestação de tratamentos médicos cuja manutenção poderia prolongar a vida do enfermo de forma desproporcionada, e cuja ausência acarreta sua morte. É sempre voluntária e direta, pois não se confunde com as omissões de tratamentos médicos vitais, que se caracterizam pela expressa recusa do paciente a submeter-se aos cuidados médicos imprescindíveis para sua saúde e que podem levar, indiretamente, à morte do enfermo.[1]
Na maioria das vezes, o homem questiona sobre a sua finitude, mas nega-se a aceitar a forma e quando ela ocorrerá, tentando abrandá-la o máximo possível, uma vez que a característica da vida é nascer, viver e conseqüentemente, morrer.
Ressalta Paulo Queiroz: “é certo que muitas discussões não avançam ou sequer são colocadas em pauta, a exemplo da eutanásia, justamente em razão de contrariarem os interesses da Igreja, para a qual a vida é um dom de Deus; logo, um bem jurídico de que não se pode dispor”[2] . Esclarece o autor que o direito, como uma prática social discursiva, não é só o que as leis dizem, mas, sobretudo, o que dizemos que as leis dizem, ou seja, o direito não é fato, mas interpretação, de sorte que, em última análise, o direito não está nos fatos ou nas normas, mas na cabeça das pessoas. Numa palavra: o direito, tal qual o justo e o injusto, o ético e o estético, é em nós que ele existe, motivo pelo qual, com ou sem alteração dos textos legais, está em permanente transformação. E se de fato somos formados segundo a tradição judaico-cristã, segue-se que o direito expressará, necessariamente, esses valores.[3]
Esgotados todos os recursos terapêuticos possíveis e desde que cercada a morte de certas condições razoáveis, a eutanásia não pode ser enfocada como um fato materialmente típico porque não constitui um ato desvalioso, ou seja, contra a dignidade humana senão, ao contrário, em favor dela.
A essa conclusão se chega com base na verdadeira e atual extensão do conceito de tipo penal, que abrange a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos). A base dessa valoração decorre de uma ponderação, de acordo com cada caso, entre o interesse de proteção de um bem jurídico e o interesse geral de liberdade, fundado em valores constitucionais básicos como o da dignidade humana. Na esfera constitucional o fundamental nos parece respeitar os princípios da dignidade humana e da liberdade, o direito à autodeterminação.[4]
Segundo Luiz Flávio Gomes, a prática da eutanásia deve ser cercada de várias cautelas: (a) que o paciente esteja padecendo "um sofrimento irremediável e insuportável"; (b) que o paciente seja informado do seu estado terminal, leia-se: não há solução médica razoável para o caso e das perspectivas (praticamente nulas) do tratamento; (c) deve haver pedido por escrito, voluntário e lúcido do paciente; (d) o médico deve ouvir a opinião de um colega (ou dois), antes de cumprir o pedido. Também é muito importante a posição da família, sobretudo quando o paciente já perdeu a consciência. De qualquer modo, só se pode falar em eutanásia, nesse caso, se o paciente, previamente, manifestou sua vontade com liberdade. A família só tem o poder de ratificar pedido anterior.[5]
Várias são as providências cautelares que antecedem a eutanásia. Tudo é feito para que não aconteça uma morte arbitrária. Ao contrário, a morte tem que ser algo positivo, não negativo ou desarrazoado. A colidência se dá, na eutanásia, entre o direito à vida e o direito à morte: o primeiro só pode sucumbir quando o sofrimento que padece o paciente chega a afetar a sua própria dignidade. A morte eutanásica é uma forma de respeito à dignidade humana, por isso que não é desvaliosa, ao contrário, é valiosa, é respeitadora do princípio da dignidade da pessoa humana.
Frente às questões, da dignidade e direito à vida, cabe destacar que o referido direito é, sem dúvida alguma, uma obrigação do Estado, porém sua interpretação não deve ser estendida como uma imposição legal do Estado, cabendo a esse, o dever de proporcionar dignidade ao ser humano, e viabilizar todos os mecanismos que impeçam qualquer ato que afronte a vida. Sendo que essa leitura deve limitar-se à vontade do ser humano, no tocante ao seu direito individual, apoiado ao direito à liberdade e à dignidade.
Finalmente, apesar dos avanços técnicos que a temática encerra e dos diferentes posicionamentos quanto à prática da eutanásia, no ordenamento jurídico brasileiro, em desfavor da eutanásia pesa a falta de regulamentação sobre o tema, já que deveriam ser rigorosamente disciplinadas no nosso país, cercando de todas as providências necessárias para que não se produza uma morte arbitrária.
Notas de Rodapé:
[1] CARVALHO, Gisele Mendes de. Ortotanásia é eutanásia, mas não é crime (Considerações a respeito da Resolução nº 1.805/2006 do CFM e sua compatibilidade com o Código Penal). Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 20.03.2008.
[2] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 4ª Edição. Completamente Revista e Ampliada. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2008.
[3] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 4ª Edição. Completamente Revista e Ampliada. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2008.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Disponível em: http://www.lfg.com.br. 15 jan. 2007.
[5] GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Disponível em: http://www.lfg.com.br. 15 jan. 2007.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2009.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso: em 28 ago. 2009.
CARVALHO, Gisele Mendes de. Ortotanásia é eutanásia, mas não é crime. Considerações a respeito da Resolução nº 1.805/2006 do CFM e sua compatibilidade com o Código Penal. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 20.03.2008.
GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Disponível em: http://www.lfg.com.br. 15 jan. 2007.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. 4ª Edição. Completamente Revista e Ampliada. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2008.
Como citar este artigo: SANTOS, A Eutanásia sob a Perspectiva do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.lfg.com.br - 06 de novembro de 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário