Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu
Processo nº 2006.038.004747-1
J. em 2 de setembro de 2008
De início é mister lamentar profundamente a total falta de razoabilidade na duração do presente processo, que vem tramitando há quase dois anos e meio(!) — isto só no primeiro grau de jurisdição — sem que até aqui tenha se encerrado com a entrega da prestação jurisdicional, em absoluta e clara vulneração ao princípio constitucional contido no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.04, que estatui: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Justamente por conta disso foi relaxada a custódia cautelar do denunciado por excesso de prazo, quando este já se encontrava há seis meses e vinte e cinco dias preso em regime integralmente fechado (fls. 156/157), cabendo, entretanto, perguntar: isso basta? A tanto encontra-se adstrita a garantia fundamental da duração razoável do processo? À soltura do réu, quando excedido o prazo de prisão cautelar? Entendemos que não, afinal, no dizer do ilustre magistrado Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho “a celeridade... não pode ser unicamente deferida a réus presos. Os réus soltos também têm o direito de não ficarem vinculados indefinidamente a um processo criminal”(1).
Não é de agora (na verdade, vem desde Beccaria) que diversos juristas se debruçam sobre o tema da lentidão da Justiça e, mais especificamente, sobre o grande drama que é a demora de um processo criminal para o acusado, verdadeira “espada de Dâmocles”, mantida sobre a cabeça do réu enquanto não decidida sua sorte.
Já o grande Rui Barbosa, na magnífica Oração aos Moços, sustentava — em passagem imorredoura: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”(2).
(...)
Contudo, algumas questões preliminares se impõem à constatação e decisão relativa à duração não razoável. A primeira delas concerne a o que se deve entender por “duração do processo”, sendo que a resposta nos é fornecida pelo culto magistrado fluminense André Nicolitt, nos seguintes termos: “...o marco para a análise da contagem do prazo é a determinação do sujeito que está sendo investigado, o que equivale ao nosso indiciamento. Assim, em nosso sistema processual penal, o prazo começa a correr quando surge a figura do indiciado na fase da investigação”, enquanto que “quanto ao termo final, cremos que coincide com o trânsito em julgado da sentença absolutória, condenatória, terminativa ou com a decisão de arquivamento do inquérito”(3), restando claro destas lições que, se o presente feito teve início há longo tempo, está ainda mais longe de terminar.
Mas, a partir de qual momento a duração deixa de ser razoável? Cumpre estabelecer aqui, na esteira dos ensinamentos do referido colega André Nicolitt, duas premissas: “Primeiro, afirmar que a análise da duração razoável do processo deve ser feita em cada caso concreto, não sendo possível uma formulação de regra abstrata e genérica sobre o tema. Em segundo, a análise da razoabilidade tanto pode se dar quando o processo estiver findo ou quando este ainda estiver em curso, ainda que a situação de retardo venha ser recuperada”(4).
Em seguida, esclarece: “...verificando-se uma dilação, ou seja, um evidente e manifesto prolongamento, passa-se à análise da razoabilidade do prazo de duração, o que deve observar os seguintes aspectos: 1) a complexidade da causa; 2) a conduta dos litigantes; 3) o contexto em que se desenvolveu o processo; 4) a atuação das autoridades judiciais e 5) a importância do litígio para os demandantes”(5).
No caso concreto, estamos diante de processo que deveria estar adstrito a rito procedimental concentrado (seja aquele previsto na revogada Lei 6.368/76, ou nos ritos igualmente céleres das duas Leis que a sucederam no tempo), sem qualquer mínima complexidade fática ou jurídica, desenvolvido em contexto de plena normalidade, atinente a um único denunciado que, a seu turno, em momento algum contribuiu para a demora, daí se concluindo que já deveria o feito estar encerrado, ao menos em primeira instância, há tempos. Não obstante isso, de atropelo em atropelo, de atraso em atraso, de protelação em protelação, repito, se arrasta há quase dois anos e meio, i.e., há cerca de novecentos e dez dias, ou, em suma: um processo que deveria obter sentença em três ainda não a obteve em trinta meses.
Aliás, verifica-se que o presente feito já se alonga por tempo suficiente para que o acusado já tivesse obtido, na hipótese de condenação, a declaração de cumprimento integral da reprimenda fixada, posto tratar-se de réu primário e de bons antecedentes, o que levaria uma eventual pena a aquietar-se no mínimo legal (na espécie, três anos, posto que ultra-ativo o preceito secundário do artigo 12 da revogada Lei 6.368/76, eis que mais benéfico ao réu), aplicando-se ademais o que determina o § 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 (que há de retroagir in bonan partem).
O tempo no evolver da marcha processual é apontado por Aury Lopes Jr., em belíssimas palavras, como um paradoxo ínsito ao ritual judiciário: “um juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente, no futuro, será um constante reviver do passado”(6).
Neste ponto não se deve olvidar que se trata o acusado de um cidadão que não voltou a cometer outros crimes desde aquele que lhe é imputado na denúncia ora apreciada (sua Folha de Antecedentes Criminais, consultada em 29 de agosto de 2008 e ora acostada aos autos, permanece com menção exclusiva ao presente processo), cidadão que se encontra plenamente adaptado ao livre e lícito convívio social, cujo delito em tese perpetrado não causou diretamente mal algum a qualquer pessoa ou patrimônio, enfim: crime que não passa de mera reminiscência cartorária, que se resume a este amontoado de folhas abrangendo, ainda em tese, um pequeno momento da vida pregressa do réu — em nada condizente a sua situação atual — e nada mais. (...)
Ou seja, passados dois anos e seis meses, a ninguém mais interessa (ou deveria interessar) a condenação do acusado, o que somente traria prejuízo pessoal a ele próprio, e mesmo à sociedade que teria de suportar mais um cidadão sobre quem recairia a pecha de condenado, que passaria a enfrentar dificuldades para empregar-se eis que estigmatizado como “traficante de drogas”, e que possivelmente teria de recorrer novamente ao crime como derradeira alternativa para poder sobreviver. Não estaríamos, pois, buscando com o processo penal meios de ressocializar o acusado (que já está plenamente ressocializado), mas sim de entregá-lo novamente nas mãos do crime, o que reflete um absurdo contra-senso.
Nos defrontamos aqui, em suma, indubitavelmente, com hipótese de injustificável duração não razoável do processo, com todas as premissas e conseqüências de sua caracterização.
Que fazer diante disto? Socorramo-nos, mais uma vez, nas lições de Nicolitt: “Na doutrina alienígena, as soluções encontradas para a violação do direito ao tempo razoável do processo em matéria penal têm sido muito variadas. As vias mais discutidas são: a) o indulto; b) a liberdade condicional; c) a não execução da pena; d) a redução proporcional da pena; e) a atenuante; f) a eximente; g) a remissão condicional h) a nulidade e i) a prescrição por analogia”(7), sendo que “à luz do ordenamento jurídico brasileiro não podemos falar em uma solução... O que não podemos é deixar de dar efetividade à Constituição e negarmos um direito fundamental”(8). Assim, o brilhante magistrado sugere algumas opções, adequadas ao direito pátrio, quais sejam: perempção, perdão judicial, julgamento no estado do processo e aplicação de atenuante genérica, salientando alfim que “não há razão para negar vigência ao mandamento constitucional que instituiu o direito a um processo em tempo razoável. Ao contrário, devemos buscar interpretações projetivas que permitam dar vida e concretude ao projeto constitucional”(9).
Ressalte-se que o colendo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao menos em duas oportunidades, considerou o princípio da duração razoável do processo aplicando-o para ensejar a diminuição da pena por conta de atenuante inominada (5ª Câmara Criminal, Apelação nº 700071000902, j. em 17/12/2003, rel. des. Luis Conzaga da Silva Moura), e para absolver o denunciado (6ª Câmara Criminal, Apelação nº 70019476498, j. em 14/06/2007, rel. des. Nereu Giacomolli).
Sem embargo destas e de outras tantas opiniões da mais alta relevância em se tratando de tema vinculado a efetividade de garantia fundamental do cidadão(10), que não pode restar como letra morta ou dispor de reflexos tão-só em tema de prisão cautelar na falta de norma mais adequada a respeito, e levando em conta que a “mera” declaração de nulidade do feito por decorrência da vulneração ao princípio constitucional em tela (o que de fato se verifica, ressalte-se) não impediria a repetição da ação(11), entendemos que a solução mais adequada, em termos processuais e materiais, face a não duração razoável do processo será a extinção deste sem análise do mérito por decorrência da falta de condição da ação, qual seja, o interesse em agir.
De fato, se é correto que “o objeto do processo penal”, ao menos naquelas ações de natureza condenatória, nas palavras de Aury Lopes Jr., “é uma pretensão acusatória, vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz através de uma pena ou medida de segurança”, a utilidade da ação (entendida esta como um dos elementos constitutivos do interesse em agir, junto com a necessidade e adequação) somente se fará presente se, ao final, se vislumbre a possibilidade de aplicação de uma pena revestida de todas as suas “funções”. Por outras palavras: carecendo, no caso concreto, a pena a ser em tese fixada destas “funções”, torna-se inútil a ação que visa alcançá-la em tais termos. Ou ainda, e em suma: se a pena é de todo inútil, também inútil será a ação que a persegue. (...)
Ocorre que, seja sob o prisma retributivista, seja sob a ótica utilitarista, ou mesmo com base no argumento ressocializante, constatamos que a duração irrazoável do presente feito dá ensejo a que a pena a ser porventura fixada encontre-se totalmente despida de qualquer função.
Como não bastasse, portanto, ser oriunda de processo nulo por vulneração ao princípio constitucional da duração razoável do processo, a pena perseguida nesta ação mostra-se de todo inútil, pelos mais variados aspectos, alguns deles já alhures referidos, cabendo citar:
a) o acusado, passados mais de dois anos desde a pretensa prática do crime descrito na inicial acusatória, não é mais a mesma pessoa que, em tese, perpetrou o delito, pelo que se estaria o Estado retribuindo com um mal a alguém que, passado tanto tempo, vem se limitando a praticar o bem, e cujo mal em tese feito não mais passa do que uma mera reminiscência cartorária;
b) o Estado já retribuiu ao acusado o mal que ele, em tese, perpetrou, submetendo-o a mais de seis meses de prisão cautelar cumprida em regime integralmente fechado, bem como à angústia e vergonha de se ver processado perante a Justiça Criminal ao longo de dois anos e seis meses, durante os quais compareceu ao Fórum na qualidade de réu, na maioria delas estando solto, em 13 (treze!) ocasiões distintas (fls. 54/57, 88, 98, 122, 140, 156/157, 195, 196, 197, 203, 212, 220 e 266);
c) não mais praticando qualquer ilícito penal desde dois anos e meio até a presente data, não há que se cogitar da necessidade de aplicação de uma prevenção especial em face do réu, que se praticou aquele crime contido na exordial, com o passar dos anos já se encontra “redimido moralmente”, como diria S. Tomás de Aquino, e de todo afastado de práticas delitivas (em várias ocasiões o réu não foi encontrado em casa para ser intimado porque estava trabalhando — e mesmo assim compareceu aos atos processuais para cuja intimação estava sendo procurado);
d) a pouca (ou nenhuma...) divulgação que teria uma sentença condenatória lavrada neste caso concreto, somada ao tempo decorrido desde o pretenso fato criminoso, do qual poucos (ou ninguém... Talvez somente nós mesmos, operadores de direito, que aqui estamos a trabalhar...) se lembram, desveste por completo a pena de seu caráter de prevenção geral ou intimidatório;
e) apenar o acusado em nada contribuiria para ressocializá-lo, pelo contrário: estaria a Justiça, em verdade, contribuindo para estigmatizá-lo, prejudicando suas “condições e perspectivas de vida e de trabalho” — no dizer de Ferrajoli — duramente conquistadas de maneira lícita ao longo de todo o tempo percorrido por este malfadado processo, levando-o a manter contato novamente com o mundo do crime, do qual se vê afastado (se é que nele se inseriu nalguma ocasião), ensejando perda de emprego, de contato familiar — de auto-estima, de esperança, da possibilidade de sobreviver condignamente sem ter de sequer pensar em cometer (de novo?) algum crime...
Enfim, numa única palavra, mais abrangente, precisa e profunda do que todas aquelas que até aqui utilizamos: eventual sentença condenatória nestes autos seria, “simplesmente”, injusta.
Repito: inútil a pena, inútil o processo que a persegue, e inútil o processo, ausente o interesse em agir.
Por tudo o que foi exposto e devidamente fundamentado, declaro extinto o presente processo sem análise do mérito com fundamento no artigo 3º do Código de Processo Penal, c/c. o inciso VI do artigo 267 do Código de Processo Civil. Sem custas.
P.R.I. Vista ao Ministério Público e Defensoria Pública. Intime-se pessoalmente o acusado para ciência e, após, dê-se nova vista à Defensoria Pública. Transitada em julgado, expeça-se Alvará em favor do réu para levantamento da quantia apreendida conforme fls. 15, entregando-se-o mediante mandado ao denunciado, oficie-se para observância do que estatui o artigo 72 da Lei 11343/2006, comunique-se, anote-se, dê-se baixa e arquive-se.
Notas
(1) Castanho de Carvalho, L.G. Grandinetti. Processo Penal e Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 227.
(2) Barbosa, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Russel, 2004, p. 47.
(3) Nicolitt, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 71.
(4) Nicolitt, André Luiz. Op. cit., p. 72.
(5) Idem. Op. cit., p. 72.
(6) Lopes Jr., Aury. Op. cit., pp. 137/8.
(7) Nicolitt, André Luiz. Op. cit., p. 118.
(8) Idem. Op. cit., p. 123.
(9) Ibidem, p. 127.
(10) Nicolitt preconiza a adoção da perempção por analogia; Lopes Jr. sustenta a necessidade de extinção do processo por ilegitimidade do poder punitivo pela desídia do Estado.
(11) “Em que pese não haver dispositivo legal que indique a dilação indevida como causa de nulidade, tal óbice seria facilmente suplantado, vez que a nulidade teria fundamento na própria Constituição, dispensando assim qualquer outro dispositivo infraconstitucional. Alguns autores ainda resistem à idéia de que o reconhecimento da nulidade não poderia conduzir a um pronunciamento automático de absolvição, o que daria margem a um novo ajuizamento, sendo certo que tal solução em nada resolveria vez que mais uma vez estaríamos diante dos problemas tempo e processo” – Ibidem, p. 124.
Marcos Augusto Ramos Peixoto
Juiz de Direito
Boletim IBCCRIM, Dezembro de 2008.
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