quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Artigo: Morosidade e pobreza na justiça penal

No dia 14/07/2008, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, disse em entrevista que “muitas vezes o tribunal tem recebimento (sic) habeas corpus até em papel de pão”(1), numa tentativa de demonstrar que a Suprema Corte não se presta apenas para soltar empresários ricos.

Uma Justiça que recebe habeas corpus em papel de embrulhar pão não pode ser dita que, por isso, é acessível. O réu que impetra habeas corpus usando tais meios o faz não porque o Judiciário é eficiente na proteção de direitos, mas porque a assistência jurídica ainda continua sendo inacessível ou inexistente para muitos brasileiros. Isto é indubitável. Em São Paulo, a OAB suspendeu convênio com a Defensoria Pública e assim deixou de fazer atendimentos gratuitos a pessoas carentes. Noutras cidades do país, o serviço de Defensoria Pública ainda não funciona adequadamente e o papel da assistência jurídica segue sendo cumprido por advogados particulares.

Não obstante a sua inércia, o Estado almeja resolver a morosidade no Judiciário apenas sob a ótica do juiz. É exemplo frisante disso o texto do art. 428, CPP, que pretende solucionar o congestionamento de processos do Júri simplesmente decretando o desaforamento em razão do comprovado excesso de serviço, sem que se tenha efetivamente o tratamento das causas que levam ao excesso, preferindo o legislador romper seriamente o princípio da identidade física do juiz natural da causa, mesmo quando para a demora não tenham concorrido qualquer das partes, sendo a falta exclusivamente do Estado-Administração.

A Câmara de Deputado também estuda o Projeto de Lei n. 3.375/08, do deputado Luciano Castro (PR-RR), que visa dar prioridade à tramitação dos processos de competência do Tribunal do Júri. Segundo a Proposta, os processos serão “prioritários, em qualquer instância de julgamento”, responsabilizando penal e administrativamente o juiz e o Ministério Público pela sua procrastinação.

A morosidade no Judiciário não se resolve como se fosse um problema de fila de banco. Não será apenas convocando um juiz substituto que solucionaremos esta questão. E quando o juiz substituto ultrapassar o prazo? Chamam o substituto do substituto? E se o juiz substituto já possuir processos com excesso de prazo? Como visto, não é assim que se decide a questão da morosidade.

Por outro lado, não esqueçamos a existência de Varas que simplesmente estão sem juízes e promotores titulares ou sem o número adequado de servidores. Em épocas de eleições, por exemplo, os juízes simplesmente precisam dar prioridade às questões eleitorais, muitas vezes em detrimento de outras ações.

Não se amplia a produção dos juízes sem discutir a capacidade de produção do Judiciário. A produção no Judiciário também não prescinde da análise dos casos de excesso de demanda em muitas Varas. Todavia, leis e mais leis surgem cobrando produtividade judicial, mas não asseguram o aumento da capacidade produtiva do Judiciário e tampouco garantem a eficácia das leis que já existem. Muitos juízes não possuem a capacidade de produzir satisfatoria­mente, de acordo com que se espera deles, porque, em muitos casos, o motivo se dá por razões da falta de capacidade de produção do aparato jurisdicional do Estado.

Sem aumentar a capacidade de produtividade do Judiciário, não há produtividade do juiz. Uma coisa é morosidade “no” Judiciário e outra é a morosidade “do” Judiciário, o que não se confunde, além disso, com a morosidade do próprio juiz. Com efeito, a morosidade “no” Judiciário não é só “do” Judiciário.

Porém, precisamos ter cuidado para não resolver a questão da morosidade por meio do empobrecimento do aparato jurisdicional. O processo do Estado Democrático não se prende fatalmente à inércia do Estado para com a assistência jurídica. Cabe ao juiz superar este obstáculo sendo ele próprio o agente garantidor dos direitos individuais, sem que isto implique quebra da imparcialidade, mas que signifique uma nova postura ética. Portanto, é da essência do processo o contraditório efetivo, sem o qual descabe reconhecer o acesso à justiça penal. Nessa busca pelos direitos substantivos fundamentais, impõe-se reformular o conceito unitário de Justiça. Ainda cabe espaço para a construção de uma malha de Justiça Social que extrapole o próprio Judiciário.

Diante desse desafio, os Juizados Especiais podem cumprir, adequadamente, uma função garantista e acessível, mas não devemos esperar deles uma justiça amesquinhada, na qual as partes peticionam sem assistência jurídica e se vêem muitas vezes obrigadas a negociar direitos certos em troca da compensações financeiras infames. A terceira onda não dá expressão a uma Justiça pobre para os pobres, mas sim viável aos pobres(2). Em relação aos Juizados em Geral — incluindo aqui os da Violência Doméstica e os da Infância e Juventude —, o perigo sempre será torná-los uma Justiça para pobres ou uma representação mal-acabada do modelo judiciário tradicional, destinado, exclusivamente, ao controle da massa social.

Nas ondas de acesso, o Estado brasileiro preferiu adiar o estágio da assistência jurídica, como se fosse possível alinhavar a implementação dos passos seguintes sem o seu acatamento. Em qualquer que seja o processo, civil ou penal, descabe conversar sobre efetividade sem o cumprimento de uma condição mínima à existência da igualdade material, ou seja, nomeadamente, sem a execução pelo Estado de um programa de assistência jurídica efetiva.

Não devemos nos orgulhar de chegar onde estamos. Na era da informática, ainda continuamos com uma justiça que recebe petições em papel de pão. Por que ainda não instalamos plantões de defensores nas penitenciárias? E o que dizer a respeito de terminais eletrônicos pelos quais os presos poderiam interpor habeas corpus diretamente ao juiz plantonista a qualquer hora do dia? Continuamos com uma Justiça pobre, mantendo um sistema de gratuidade judiciária cível que tanto beneficia ricos e pobres, dispensando o pagamento de custas por meio de simples declaração (Lei 1.060/50, art. 4º), mesmo quando a capacidade contributiva denuncia o contrário.

Assim sendo, a análise da questão da morosidade também perpassa pela morosidade de tantos outros agentes e outras causas que estão relacionadas com a pobreza da e na Justiça. De fato, como expõe Ra­benhorst, ainda há hoje em dia uma cínica preocupação com a atenuação indireta da pobreza, mas não existe uma manifesta vontade de eliminá-la, o que deixa transparecer a falsa impressão de que a pobreza não pertence ao mundo dos Direitos Humanos(3). A eficácia dos direitos não se mede pela capacidade de o Judiciário receber petições acabrunhadas em papel de pão, porque a nenhum país democrático se espera para os pobres uma justiça pobre.

Notas

(1) Disponível em http://g1.globo.com. Acesso em 16/7/2008.

(2) Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 165.

(3) RABENHORST, Eduardo Ramalho. “A Pobreza no Direito e a Pobreza do Direito”, Direito e Liberdade. Mossoró, ano 2, n. 1, v. 4, p. 63-71, jul-dez/2006, p. 67.


Fábio Wellington Ataíde Alves, Juiz de Direito em Mossoró/RN, especialista e mestre em Direito.

ALVES, Fábio Wellington Ataíde. Morosidade e pobreza na justiça penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 4-5, dez. 2008.

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