Na salutar tentativa de uma legislação menos leniente para a solução dos conflitos de gênero, findou-se optando pela vereda mais curta do castigo como resposta, influenciado por uma ideologia punitivista que só beneficia a classe dominante, reforçando as estruturas intervencionistas do Estado que são chamadas, a qualquer hora, para a “correção” de desvios daqueles que “agem” contra o sistema. Esta, uma das razões da tentativa de afastamento da Justiça consensualizada pela Lei Maria da Penha. O movimento feminista, na busca pela igualdade de gênero, acabou, infelizmente, contaminado por esse discurso punitivista que, notadamente, nunca fez parte do seu lastro teórico.
A aposta no Direito Penal tradicional, que trabalha com a lógica binária do “ganhar-perder”[1], e que ainda acredita na privação de liberdade como melhor resposta possível para os conflitos sociais, compraz-se com a estratégia da ação penal pública incondicionada para os crimes de gênero. Não obstante, em que pese o desejo de parcela do movimento feminista[2], não houve a incorporação ao discurso normativo da Lei Maria da Penha do viés punitivista que tentaram a fórceps[3].
A idéia de retirar da vítima-mulher o direito de decidir sobre a autorização para instauração de ação penal nos casos de lesão corporal dolosa leve praticados com violência de gênero, nos parece, com a devida vênia, um equivocado contra-discurso na sua política emancipacionista. Alie-se o pedantismo de pretender saber o que é melhor para a mulher, subestimando-lhe força, coragem e capacidade de gerir sua própria vida. Na verdade, aderindo à natureza incondicionada da ação, estamos suprindo o Direito Penal de um paternalismo estatal que decide pela mulher o seu próprio destino. Não esqueçamos que o Direito Penal, como instrumento formal de controle da classe dominante, possui objetivos latentes, não manifestos, que vai além do discurso produzido na superficialidade.
Armar o Direito Penal com este poder significa assegurar ao sistema de justiça criminal a decisão do que é pretensamente melhor para a mulher, mesmo contra a sua vontade. Se a intenção é evitar que, uma vez ocorrido este tipo de crime, a vítima venha a não autorizar a persecução criminal e o agressor consiga escapar à intervenção estatal, por outro lado, instrumentalizamos a mulher passando por cima da sua vontade, desconsiderando uma das principais bandeiras políticas do movimento feminista, que é a de fortalecer a autonomia feminina[4], aportando-lhe meios suficientes para combater a estrutura de desigualdade presente em uma sociedade patriarcal. Deixar nas mãos do Estado o destino das mulheres vitimizadas por uma violência estrutural de gênero que foi, em grande medida, produzida ou reproduzida por este próprio Estado, não me parece a melhor solução. Significa, mais uma vez, tratar a mulher como um não-sujeito de direitos[5].
O sistema de justiça criminal, como instrumento de intervenção social formal e reprodução de uma lógica patriarcal que atravessa todo o Direito Penal, assegura, sob a escusa da defesa da sociedade, o controle sobre a vontade (e dignidade) da mulher, tratada como ser irracional, incapaz de decidir sobre a solução que melhor lhe convém para o caso concreto. Esta posição, sob o argumento de defesa dos interesses das mulheres, obedece, na verdade, a uma lógica bastante elaborada: o reforço deste instrumento de controle formal e a continuidade da tutela sobre a vontade da mulher.
Ainda mais, o reforço do Direito Penal através de suas funções declaradas (e não cumpridas) de proteção ao bem jurídico e controle da criminalidade, com impacto na redução da violência contra a mulher, através do seu instrumental punitivo, acaba trazendo uma dupla vantagem ao patriarcado e, em última instância, ao próprio sistema reproduzido pela justiça criminal: ao tempo em que se legitima com o discurso palio-repressivo de controle social, que poderá (e será) utilizado sempre que houver a necessidade de intervenção na sociedade para conter os “excessos” daqueles que ameacem a estrutura de poder, desencoraja a mulher a utilizar-se deste mesmo sistema a seu favor, uma vez que lhe frustra as expectativas de solução dos seus problemas. Precisamente sobre esse segundo ponto Larrauri comenta sobre o paradoxo do círculo das mulheres que acabam acudindo ao sistema penal: “la mujer que acude en busca de protección al sistema penal, sin apenas informaciones de como éste actúa y de cual es su lógica, acaba siendo castigada, por lo que es interpretado como ‘falta de colaboración’, y perseguida por el sistema al cual ha sido enviada precisamente en busca de protección.”[6]
Ao expropriar-se da mulher o direito de decidir sobre a conveniência da instauração de uma ação penal contra o seu agressor, atentando contra a sua vontade, nos apartamos dos modernos preceitos de vitimologia, onde a vítima é levada a dialogar com o sistema, ser ouvida sobre o que sofreu e o que busca como solução do seu problema. De outra sorte, estamos apostando que a resposta estatal da fórmula pré-fabricada da pena clássica privativa de liberdade, estandarizada a todos os casos, seja a adequada àquela mulher que sequer foi ouvida em suas pretensões.
Deixar nas mãos da mulher o poder de deflagração da ação penal acarreta duas conseqüências importantes: a primeira, a da possibilidade de negociação com o agressor da reparação desejada (não necessariamente econômica), o que pode ocorrer, inclusive, por instâncias não formais; e a segunda, a de transformar a mulher em sujeito de direitos, que decide sua própria vida, pactua ou repactua com o agressor (independente dos estereótipos que o sistema queira lhe empregar ao não decidir pela utilização da intervenção estatal). Somente assim a mulher é capaz de despir-se do seu papel social de vítima, que deve ser, mesmo contra a sua vontade, tutelada pelo Estado, para tornar-se agente na construção de sua história[7]. A mulher, mais que ninguém, sabe que na relação conflituosa com seu companheiro, o papel de vítima, quando ele é simplesmente aceito, sem qualquer contestação, acaba gerando uma maior submissão e, conseqüentemente, maior violência, pela passividade e resignação com que aceita a imposição machista.
O sistema de justiça criminal, na forma em que se encontra estruturado, com a simplificação do conflito através da participação da vítima e do agressor como meros coadjuvantes de um processo que busca, não uma solução para o conflito, senão uma resposta ao desequilíbrio na dinâmica do Estado através da aplicação da pena, não se enquadra dentro das expectativas da vítima-mulher. Por outro lado, como o Estado só consegue alcançar, através da representação do conflito no subsistema de justiça penal, a aplicação da pena, na maioria das vezes, completamente descontextualizada do conflito, não tem alternativa senão a de tentar demonstrar - e esta é uma das funções da ideologia penal -, que a resposta para a criminalidade e a violência de gênero passa pela aplicação de uma pena, com todas as suas funções declaradas e não cumpridas, ainda que contrária aos interesses da própria vítima-mulher.
Assumindo como vetor unificador, o que acima foi posto, ou seja, a garantia de autonomia da mulher como pressuposto do seu empoderamento, a melhor interpretação que se pode fazer da Lei 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, no que diz respeito à natureza da ação nos crimes de lesão corporal dolosa leve, é aquela que, além de impelir consistência e coerência sistêmica, garante a realização do princípio da dignidade humana, ou seja, sua natureza pública condicionada à representação.
Bibliografia
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997.
LARRAURI, Elena. Criminologia Crítica y Violência de Gênero. Madrid: Editorial Trotta, 2007.
MESSUTI, Ana. O Tempo como Pena. Trad. Tadeu Antônio Dix Silva e Maria Carla Veronesi de Toledo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
SCHNITMAN, Dora Fried. Novos Paradigmas na Resolução de Conflitos. In: SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLE-JOHN, Stephen (orgs.). Novos Paradigmas em Mediação. Porto alegre: Artes Médicas, 1999.
TOURAINE, ALAIN. O Mundo das Mulheres. Trad. Francisco Moras. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
[1] “nossa cultura privilegiou o paradigma ganhar-perder que funciona com uma lógica determinista binária, na qual a disjunção e a simplificação limitam as opções possíveis. A discussão e o litígio – como métodos para resolver diferenças – dão origem às disputas nas quais usualmente uma parte termina ‘ganhadora’, e a outra ‘perdedora’. Essa forma de colocar as diferenças empobrece o espectro de soluções possíveis, dificulta a relação entre as pessoas envolvidas e gera custos econômicos, afetivos e relacionais”. SCHNITMAN, Dora Fried. Novos Paradigmas na Resolução de Conflitos. In: SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLE-JOHN, Stephen (orgs.). Novos Paradigmas em Mediação. Porto alegre: Artes Médicas, 1999, p. 17.
[2] Aquele que Elena Larrauri chama de “feminismo oficial”.
[3] Lembremos, por exemplo, que não criou a Lei 11.340/06 nenhuma nova figura penal e, de seus 46 (quarenta e seis) artigos, apenas 03 (três) tem natureza exclusivamente penal.
[4] Seguindo a fórmula kantiana: “A autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional”. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 79.
[5] “Não é difícil incorporar a vitima à categoria de não-sujeito de direito.” MESSUTI, Ana. O Tempo como Pena. Trad. Tadeu Antônio Dix Silva e Maria Carla Veronesi de Toledo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 76
[6] LARRAURI, Elena. Criminologia Crítica e Violência de Gênero. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 76.
[7] Torna-se, nas palavras de Alain Touraine, uma mulher-sujeito: “a mulher-sujeito opõe-se às definições herdadas das funções que a ordem social atribui às mulheres, destruindo sua subjetividade”. TOURAINE, ALAIN. O Mundo das Mulheres. Trad. Francisco Moras. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p. 51.
Por Renato Vasconcelos Magalhães é juiz, doutor em Direito pela Universidade de Burgos (Espanha)
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2009.
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