O magistrado Eugênio Raúl Zaffaroni é um dos mais respeitados nomes do
Supremo Tribunal da Argentina. Professor de Direito Penal e autor de
livros consultados em toda América Latina, ele esteve recentemente em
Goiânia para participar do Congresso Grandes Nomes, uma iniciativa da
Associação Goiana do Ministério Público.
Após o congresso, ele recebeu a reportagem do Diário da Manhã para
falar de assuntos correlatos ao Direito Penal, caso de criminalidade e
segurança pública. Autor com grande capacidade de sintetizar as
conquistas do Direito Penal moderno, ele explica ponto por ponto suas
opiniões a respeito de temas polêmicos como diminuição da maioridade
penal para 16 anos, crimes de bagatela, política criminal, download na
internet versus direitos autorais, cobertura do jornalismo policial,
direito penitenciário e justiça na América Latina. Diz que é necessário
aprimorar o sistema legislativo, mas aponta um grave problema de
lógica: a confecção da norma está nas mãos dos políticos, que atuam de
forma demagógica ao elaborar projetos de lei. Um dos exemplos é a
discussão a respeito da diminuição da maioridade penal no Brasil,
indica o penalista argentino. Ele se revela contra, pois o presídio
atual não recupera ninguém: “Fabrica criminoso e psicopata”, diz.
Carregado de humanismo, o teórico é autor de uma concepção realista
marginal jurídico-penal. Tais palavras soam complexas, mas
sinteticamente significam uma menor aplicação do legalismo e maior
preocupação com o sentido de Justiça. Deixam-se de lado as imposições
do Estado para se pensar nas contradições. Trata-se de um pressuposto
filosófico. Nas academias de Direito, seu pensamento avança para um
minimalismo que tende a proclamar o abolicionismo. Ou seja: o Estado
deve intervir o mínimo com a pena, somente em casos realmente graves.
Trata-se, porém, de uma visão de dentro do Direito Penal e não mais um
postulado dos filósofos. Ele demonstra a crise política e aponta a
implosão do sistema penal como conseqüência das ações atabalhoadas dos
governantes, que lucram com a insegurança e violência. A seguir,
trechos da entrevista concedida ao DM.
DM – Qual será o futuro do Direito Penal?
Zaffaroni – A legislação vai agravar mais, vamos fazer mais
besteiras, vamos agredir mais a racionalidade e o ser humano. Talvez o
povo vai descobrir que os políticos estão vendendo ilusões. Esse
direito vai delimitar mais nossas liberdades. É isso que tentam fazer
com o pretexto de dar mais segurança.
DM – Mas filmar ruas não diminui a violência?
Zaffaroni – Alguém pesquisou violência a sério? Temos estatísticas? Temos diagnósticos? Em um hospital vamos curar tudo com penicilina?
Diário da Manhã – É certo diminuir a maioridade penal?
Zaffaroni – É uma medida demagógica e vazia de conteúdo. O
efeito real será jogar adolescente na cadeia. A primeira coisa que
acontece lá é esse adolescente ser estuprado. Isso gera transtorno de
personalidade. Fabrica ódio e condiciona condutas posteriores
psicopáticas. Portanto, é fabricar assassino.
DM – Mas na Argentina esse limite é de 16 anos, correto?
Zaffaroni – Tem responsabilidade penal, mas somente em crimes graves.
DM – E esse modelo não poderia ser aplicado no Brasil?
Zaffaroni – Tem uma pena menor na Argentina, segundo a escala da
tentativa: um terço aumentado a menos. Não é um modelo com
responsabilidade plena.
DM – Então, isso não se aplicaria também no Brasil?
Zaffaroni – Talvez. Mas também na Argentina tivemos propostas de
descer a idade penal para 14 anos, tornando o jovem de 16 com
responsabilidade plena. Isso foi feito em 1976 pela ditadura militar.
Funcionou mal e em 1980 mudou para o sistema tradicional, onde o jovem
não cumpre a pena como criminoso comum.
DM – Discute-se por aqui a pena de morte?
Zaffaroni – Isso é uma discussão dos políticos. E seria uma
discussão muito mais demagógica ainda. Os políticos sabem que não podem
impor a pena de morte. Não podem estabelecer a pena de morte, pois
seria o caso de denunciar o Estado à Convenção Americana dos Direitos
Humanos.
DM – Mas os Estados Unidos praticam pena de morte.
Zaffaroni - Os Estados Unidos não ratificaram a Convenção
Americana dos Direitos Humanos. É um país que fala de direitos humanos,
mas não assina a convenção. O Brasil teria que sair da OEA (Organização
dos Estados Americanos) para aplicar a pena de morte.
DM – O senhor já falou sobre a possível criação de um FBI na Argentina, correto?
Zaffaroni – Exatamente. O que acontece é que temos uma Polícia
Federal que cuida também da cidade de Buenos Aires. Se perguntarmos
para um americano se acharia normal o FBI estar pegando ladrões em
Washington, os americanos diriam que estamos doidos. A função da
Polícia Federal deve ser diferente. E a polícia de Buenos Aires deveria
ter uma ação mais normal como pegar ladrão.
DM – No Brasil a Polícia Federal vem se aproximando do conceito técnico do FBI, mas faz muita propaganda de seus atos.
Zaffaroni – Não conheço bem a Polícia Federal do Brasil. Mas a polícia que defendo deve ser mais técnica.
DM – Ela seria uma polícia para combater tráfico de drogas, por exemplo?
Zaffaroni – Não penso em tráfico de drogas. Estou pensando em
coisas mais sérias. Destruição em massa, como aconteceu na Argentina,
com a embaixada de Israel. Penso em tráfico de armas, de pessoas,
exploração em massa da prostituição, crimes econômicos, corrupção mais
complexa para a Polícia Civil investigar. É preciso polícia
multiespecializada formada em Ciências Econômicas, com contatos
internacionais. Crimes como o bancário e financeiro, que necessitam de
polícia muito técnica. A América Latina precisa de uma polícia séria,
capaz de coibir estes crimes, caso do crime organizado. Eu não sei bem
o que é crime organizado, mas tenho certeza que é também corrupção. Não
funciona uma criminalidade organizada sem corrupção oficial.
DM – No Brasil se aplica muito o princípio da insignificância. Ocorre o mesmo na Argentina?
Zaffaroni – Se aplica muito. Inclusive a jurisprudência
reconhece. O poder punitivo tem que ser exercido em questões mais ou
menos sérias. Não posso dizer que temos um exemplo de privação de
liberdade se o passageiro do ônibus foi levado numa parada a mais. O
mesmo ocorre com o furto de coisas sem valor. Não teríamos orçamento
suficiente para arcar com processos em que o sujeito pegou um saquinho
de balas. Temos que criar um sistema de infrações menores para que tudo
seja resolvido de forma rápida.
DM – A Suprema Corte da Itália diz que fazer download de músicas e filmes sem permissão das gravadoras não é mais crime.
Zaffaroni – Isso é praticamente incontrolável. Todo mundo faz,
né? O mesmo aconteceu com o xerox. Acho que a proibição penal tem um
espaço imaginativo do legislador e se as condições técnicas mudam é
preciso mudar a lei. Hoje tiramos fotocópias de livros nas
universidades. Então o âmbito de proibição está abarcando algo que não
foi imaginado pelo legislador. Temos que legislar novamente se mudaram
as condições. Devemos passar a punição para o Direito Civil? Realmente
não sei. Vamos punir pesquisadores por usarem xerox? Vamos punir todos
estudantes por conta desses direitos autorais? Punir todo mundo é
impossível.
DM – O Brasil afrouxou sua legislação de drogas. O usuário não pode mais ser preso.
Zaffaroni – Nós achamos que o tóxico ilícito para próprio
consumo, que não caracterize condições de gerar perigo de tráfico, não
é um problema penal. Punir isso é até mesmo inconstitucional. O Estado
tem direito de intervir quando praticamos ação que pode lesar uma
terceira pessoa. Se o usuário quer continuar consumindo drogas, tudo
bem: isso não é um problema do Estado, mas da saúde dele. Agora é
diferente de legalizarmos os tóxicos. Não podemos fazer isso só num
Estado. Estamos vinculados por tratados internacionais. Não sei se
poderíamos discutir esse assunto no mundo atual. É uma discussão que
precisa ser resolvida pelos economistas. É uma questão de
macroenomonia. A proibição gera um preço de distribuição, que tem uma
renda incrível. Grande parte disso fica nos países consumidores, caso
dos Estados Unidos. Estamos falando de cocaína, que é produto de
economia primária. E vai acontecer com ela o que ocorreu com outros
produtos primários após a Segunda Guerra Mundial. Ela vai ser
substituída por produtos sintéticos. Os adeptos da Escola de Chicago
dizem que o uso poderia ser liberado sem qualquer problema. Entendem
que esse dinheiro se destinaria para a poupança. Por outro lado, os
neokeynesianos dizem o inverso: essa liberação traria grande depressão
mundial. Parece que até agora estes últimos estão vencendo.
DM – No Brasil, o Supremo é uma corte política. Os ministros são indicados pelo presidente. Na Argentina é semelhante?
Zaffaroni – Os ministros são escolhidos pelo presidente e tem também acordo do Senado Federal, com uma maioria de 2/3 dos integrantes.
DM – Mesmo assim, indicados pelo presidente, eles votam contra o interesse do governo?
Zaffaroni – A nomeação é política, sim, mas votamos contra o presidente quando precisa.
DM – Como combater a violência?
Zaffaroni – Existem duas formas: prevenção primária e
secundária. Na primeira, é preciso política social, escolas, buscar as
raízes da desigualdade, investir no ser humano. A prevenção secundária
é a polícia e o sistema de segurança. Depois do festival dos anos 90,
da globalização, temos uma sociedade ainda mais estratificada. Já não
podemos fazer política de prevenção primária. Em segundo lugar, as
polícias foram se deteriorando cada vez mais, corrompidas pelos
políticos e governantes. Isso é bastante uniforme na América Latina. Os
governantes pensaram que poderiam controlar a violência trocando
governabilidade por corrupção. Isso aconteceu e funcionou durante
muitos anos. Mas a globalização trouxe o tráfico de drogas, armas,
pessoas. Quebraram também as cadeiras de mando das próprias polícias.
Por isso são tão ineficazes na prevenção secundária. Portanto, não
temos prevenção primária dos conflitos. E deterioramos a prevenção
secundária, além de polarizarmos as riquezas da sociedade. A solução,
então, é mudar a lei penal? Simples assim? Lógico que não. A direita
demagógica monta a campanha contra as esquerdas sobre a base da
insegurança. As esquerdas, sempre culpadas de ser desordeiras, reagem.
É uma concorrência de quem mais faz besteiras.
DM – Preso tem que ter vida boa na cadeia? Não tem que trabalhar, por exemplo?
Zaffaroni – Teria que trabalhar, sim. Acontece que nossas
cadeias não dão oportunidade. Não é questão de dizer que a gaiola seja
ruim. É mais do que isso. Nós não temos condenados. Nós não temos
penas. Impomos algumas penas a partir do código de processo, que seriam
penas apenas preventivas. Se pegarmos 100 presos na província de Buenos
Aires, cerca de 75 deles não estão condenados. Só 25 deveriam estar
ali, não tiveram o devido processo legal. Vamos dizer que 25 dos presos
deveriam ficar um pouco mais na cadeia, outros 25 vão ser absolvidos e
outros 50 vão ser condenados e no momento da condenação vão ser
libertados para cumprir penas foras. Mas todos estão presos
preventivamente. Falar em sistema penitenciário, falar em tratamento,
trabalho, é algo para 25% nas cadeias da América Latina. Os outros não
deveriam estar ali.
DM – Existem denúncias de que a imprensa brasileira condena o suspeito antes do Judiciário. Na Argentina é assim também?
Zaffaroni – Isso acontece quando o preso é um sujeito mais marginal. Com o rico não acontece.
DM – Mas como mudar essa realidade injusta?
Zaffaroni – Proibir a publicação dos nomes das pessoas
envolvidas bem como as fotos até ocorrer o trânsito em julgado. Na
maioria dos países não se discute isso, mas existem outros que
apresentam uma autolimitação da imprensa. O jornalista coloca apenas as
iniciais das pessoas envolvidas. Isso ocorre mais na Europa. Os
suspeitos podem entrar, inclusive, na Justiça e ganhar indenizações por
conta dos abusos.
DM – A questão mais complexa é o crime grave ou leve?
Zaffaroni – Todos concordamos que o autor de crime grave deve ir
para cadeia, ter privação de liberdade. Poderíamos ter outras soluções,
mas neste momento da cultura é o que podemos fazer. Todos concordam
também que um crime muito leve não deve ter cadeia. O problema é que
tem o crime de gravidade média. É aqui cada Estado escolhe o que quer
fazer com a pessoa. Pegamos o mapa de índice prisional. Os Estados
Unidos têm 500 presos por 100 mil habitantes, nós temos 150 presos por
100 mil, o Canadá tem o mais baixo do mundo, algo como 50 por 100 mil.
A Finlândia tem quase o mesmo índice do Canadá. Por isso que pensamos
numa comissão internacional: alguns países têm número x de vagas para
colocar preso. Superado esse número, ultrapassado esse tamanho, vamos
liberar aqueles que faltam um mês para sair da prisão, os que cumpriram
boa parte da pena, os menos perigosos. Isso é mais racional do que
empilhar presos. Por exemplo: não sei quantos mandados de prisão
existem em São Paulo para serem cumpridos, mas são muitos. Pode colocar
todo orçamento do Estado para prender essa gente e não vão conseguir. É
loucura. Precisamos ter escola e destinar tanto dinheiro para isso
parece absurdo. Os EUA têm muito preso. É claro, eles não têm limite de
orçamento. Fabricam dólares, transferem dinheiro da assistência social
para o sistema penal, como fizeram a partir dos anos 80. E o fato é que
esse sistema de segurança pública é uma fonte de emprego. Ele gera
cerca de 2 milhões de empregos nos EUA, seria uma variável para evitar
o desemprego de qualquer país
Autor: Welliton Carlos - Editoria de Cidades
Fonte de Publicação: DIáRIO DA MANHã
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