Quem viveu durante a ditadura militar no Brasil conhece seu argumento mais famoso: "em nome da segurança nacional". Era o prenúncio de que garantias constitucionais dos cidadãos seriam subtraídas. Os poderes extraordinários conferidos ao governo federal para atacar, sem qualquer constrangimento, os direitos do cidadão garantidos pela Constituição de 1967 foram "legalizados" por atos institucionais. A obra-prima do regime militar foi o "Ato Institucional no 5", que se popularizou por sua sigla "AI-5". Seria temerário afirmar que, hoje, os cidadãos americanos estão sob um "AI-5". Mas o que eles estão vivendo tem cheiro de "AI-5".
Em nome da segurança nacional, o governo americano criou um "tribunal secreto" com a função de "legalizar", por meio de ordens judiciais, ações dos órgãos de segurança que, de outra forma, seriam uma violação clara das garantias constitucionais dos americanos. Isso explica a notícia da semana: o "tribunal secreto, chamado "Foreign Intelligence Surveillance Court", ordenou à companhia de telecomunicações Verizon a entrega à NSA [National Security Agency, a Agência de Segurança Nacional] e ao FBI (Federal Bureau of Investigations) registros telefônicos de todos os seus clientes.
A NSA, criada depois dos atentados às torres gêmeas de Nova York, em 2001, tornou-se a maior agência de espionagem do mundo. Nasceu sob a égide do "Patriot Act" (Ato Patriota), lei que foi aprovada pelo Congresso americano em 11 de outubro de 2001 — exatamente um mês depois dos atentados — e sancionada pelo ex-presidente Bush em 26 de outubro de 2001.
A maneira mais simples e fácil de explicar o Ato Patriota aos brasileiros é dizer: é uma espécie de AI-5. Ele "legaliza" ataques a garantias constitucionais dos americanos e de qualquer cidadão do mundo que é preso em qualquer país e levado para uma das prisões internacionais dos EUA, como Guantánamo.
Na prática, o Ato Patriota não alcança as mesmas dimensões do AI-5. É bem mais sutil. Porém, sob a "legalidade" instituída pelo Ato Patriota, qualquer pessoa no mundo pode ser mantida presa por tempo ilimitado, sem uma acusação formal, sem o devido processo, sem julgamento. Com base na mesma lei, o governo americano propõe a criação de mais um tribunal secreto, que terá a atribuição de "legalizar", por meio de ordens judiciais, ataques por drones a "inimigos dos EUA" em qualquer parte do mundo.
As prisões "informais" e os ataques por drones no Paquistão e no Iêmen, sem a devida "legalização", têm criado constrangimentos para o governo americano, diante de protestos esparsos. Os EUA têm uma explicação que é genericamente aceita pelos governos chamados "aliados" e, aparentemente, pelas Nações Unidas: o país está em guerra contra o terrorismo e tem o direito de se defender. A condenação mais forte, até agora, veio da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconheceu formalmente que os americanos torturaram prisioneiros em sua luta contra o terrorismo, conforme publicou a Conjur.
O Ato Patriota e suas leis filhotes têm se voltado contra os americanos, no que se refere principalmente às questões de privacidade e ao direito constitucional de não sofrer buscas e apreensões sem mandado judicial. Registros telefônicos, e-mails e sites visitados na internet são regularmente monitorados pelos órgãos de segurança. A Polícia e o FBI são acusados de rastrear pessoas e as vigiar por meio do GPS de seus carros e dos sinais de telefones celulares. O último projeto, já em curso, é o lançamento de milhares de drones no espaço aéreo do país, que servem tanto para cumprir tarefas comerciais, por exemplo, como para vigiar pessoas suspeitas de envolvimento com terrorismo ou com crimes comuns.
Até essa semana, uma parte da população americana — não a maioria — sabia ou suspeitava que as companhias telefônicas eram obrigadas a passar informações sobre telefonemas aos órgãos de segurança. Mas pensavam que isso era um problema da população muçulmana ou, de uma maneira geral, de imigrantes de origem árabe ou de outras nações estrangeiras. Desconfiavam que americanos também pudessem ser monitorados, em alguns casos isolados.
Mas, na quarta-feira (5/6), o site do jornal The Guardian publicou a ordem judicial do "tribunal secreto", que apresentou a realidade aos americanos. Basicamente, todos os clientes de companhias telefônicas do país passaram a fazer parte de um banco de dados da NSA e do FBI. A ordem judicial conseguida e publicada pelo The Guardian se refere apenas aos mais de 10 milhões de clientes da Verizon. Mas não há razão para as demais companhias não estarem recebendo o mesmo tipo de ordem judicial, de acordo com organizações de defesa dos direitos individuais do país.
O "tribunal secreto" ordenou à Verizon que forneça ao NSA e ao FBI alguns dados de todos os telefonemas feitos dentro dos Estados Unidos, sejam interurbanos ou locais. E de todas as chamadas feitas e recebidas do exterior. Elas devem fornecer, por exemplo, os números dos telefones que fizeram e receberam chamadas, incluindo do exterior.
Com relação às chamadas internacionais, a companhia tem de fornecer aos órgãos de segurança, além do número de telefone do outro país, o número "Identidade do Assinante Móvel Internacional (IMSI – International Mobile Subscriber Identity), o número da "Identidade do Equipamento da Estação Móvel Internacional (IMEI – International Mobile Station Equipment), identificador do tronco, número do cartão de chamada telefônica e horário e duração da chamada.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2013
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