O assunto da vez é a famosa “PEC 37/11”. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional nº 37, de 8 de junho de 2011, de autoria do deputado federal Lourival Mendes, a qual pretende estabelecer a investigação criminal como atividade privativa das polícias federal e civis dos estados e do Distrito Federal.
A PEC 37 tem sido objeto de grande debate nacional e muita polêmica. A discussão extrapolou o ambiente político e a seara acadêmica; chegou ao grande público, inclusive em programas de auditório, e se transformou em pauta nacional. O que seria absolutamente salutar se não fossem a pobreza da discussão teórica e as lastimáveis táticas na batalha pela titularidade da investigação preliminar.
A estratégia inicial, fruto da corrida publicitária, foi a do batismo reducionista da PEC. Os seus opositores apregoam por todos os cantos que se trata da “PEC da Impunidade”. Já os defensores falam em “PEC da Legalidade”. Em verdade, esses títulos são meros enunciados de uma discussão maniqueísta e rasa, que apenas se destinam à confusão popular e à exploração midiática.
Posteriormente, outra estratégia fora adotada: as “megaoperações”. O Ministério Público e a Polícia Judiciária passaram a realizar, isoladamente, operações em todo o país, buscando o maior número de prisões como forma de demonstração de “valioso trabalho investigativo”. Aqui reside outro perigo. Valer-se do número de prisões cautelares como pretenso indicador de eficiência investigativa.
Não restam dúvidas de que o local da discussão precisa ser restabelecido, e os argumentos, aprimorados, em homenagem à grandeza e complexidade do próprio tema. Não é possível seguir com uma discussão corporativista e populista. É necessário superar a “guerra da PEC” e passar a debater o sistema constitucional de investigação preliminar sem perder de vista o primado fundamental da República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, parece-nos que todo e qualquer modelo de persecução criminal que se pretenda democrático deve se estruturar na separação das funções estatais e no controle recíproco enquanto instrumentos de limitação dos poderes e garantia dos direitos fundamentais.
As funções no sistema penal são quatro: investigativa, acusatória, defensiva e decisória. E a cada função corresponde um ente específico. A distribuição de funções entre órgãos distintos é o que preserva o equilíbrio do sistema democrático. Não é possível imaginar que um ator acumule tarefas sob pena de retorno ao modelo inquisitivo.
É lógico que toda acusação pressupõe investigação, uma vez que não existe processo penal sem justa causa. O objetivo da instrução preliminar é justamente reunir, com absoluta isenção, elementos de informação sobre a notitia criminis, de modo a possibilitar a análise da justa causa, em especial pelo titular da ação penal. Contudo, perceba que os órgãos – investigativo e acusatório – são necessariamente distintos; caso contrário, perde sentido a função de filtro da investigação preliminar.
Registre-se, ainda, que a garantia de isenção do órgão presidente da investigação conduz a outra regra fundamental: a ninguém é dado escolher o objeto da investigação. A seletividade investigatória não se coaduna com os princípios elementares da impessoalidade e da moralidade. Em regimes democráticos não existe lugar para investigadores ad hoc.
Investigação sem controle é campo propício para abusos estatais e violações a liberdades públicas. O controle sobre os órgãos e atos investigatórios deve ser interno (exercido pelas corregedorias ou conselhos superiores) e externo (realizado por outras instituições ou poderes). O ente público de investigação preliminar deve sujeitar-se obrigatoriamente ao maior grau de fiscalização, tendo em vista que sua atividade relaciona-se diretamente com os direitos fundamentais.
Nessa esteira, a conformidade legal dos atos investigativos revela-se como instrumento basilar de controle. E nesta seara impera o princípio da legalidade estrita, de modo que a lei (e apenas a lei) deve expressamente disciplinar o procedimento de instrução preliminar. Não se admite regramento interna corporis (resoluções ou demais espécies normativas infralegais).
Enfim, esse é o marco teórico mínimo para se iniciar qualquer discussão com alguma seriedade sobre a PEC 37 ou qualquer outra proposta de emenda constitucional sobre o sistema de investigação preliminar. O debate fundamentado passa necessariamente pela análise do eixo básico e estruturante do Estado Democrático de Direito. Do contrário, ficaremos no lugar do senso comum e das táticas populistas e inquisitivas.
A nossa conclusão, portanto, é que a PEC 37 apenas serviria para reafirmar o atual desenho constitucional da persecução criminal: a Polícia Civil Estadual e Federal como responsável pelas investigações criminais em geral e o Ministério Público enquanto titular privativo da ação penal de iniciativa pública, além de controlador externo da atividade policial. Talvez venha apenas a repetir o óbvio, mas às vezes o óbvio também precisa ser dito.
*Leonardo Marcondes Machado, delegado de Polícia Civil, é pós-graduado em Ciências Penais e professor de Direito Penal e Processual Penal.
Gazeta do Povo. Justiça e Direito. 07/06/2013
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