O título desta coluna é polêmico. Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma provocação acerca da (in)validade de um conhecido instituto penal que atravessa a história do Direito moderno e chega ao século XXI.
Em todo fim de ano se discute o alcance do conhecido indulto natalino. E em todo início de ano se discute a (in)constitucionalidade do indulto coletivo decretado pelo presidente da República. Pois bem. Este ano não foi diferente. Até o mês de agosto de 2012, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão do Ministério da Justiça, recebeu sugestões e propostas para a elaboração do indulto natalino, conforme noticiado pelaConJur (clique aqui para ler). Um dia após o natal, houve a publicação do Decreto 7.873/2012 pela presidente Dilma.
Desta vez, o perdão beneficiou todos aqueles que cumprem penas privativas de liberdade, exceto os condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo, tráfico de drogas ou por aqueles crimes definidos no Código Penal Militar. Sua obtenção segue um critério geral: os reincidentes devem ter cumprido metade da pena; os não-reincidentes, apenas 1/3. Àqueles que não foram beneficiados com o perdão, o decreto autoriza a comutação das penas (clique aqui para ler).
Nos próximos meses, a aplicação do último indulto natalino será objeto de milhares de pedidos e agravos formulados em sede de execução penal. Todos debaterão suas consequências. Surgirão interpretações restritivas e extensivas quantos às hipóteses de incidência do perdão e da comutação. Entendimentos jurisprudenciais e correntes doutrinárias se formarão. As divergências chegarão ao Superior Tribunal de Justiça... Ninguém refletirá, contudo, a respeito da origem de tal instituto e tampouco acerca do sentido que há na sua manutenção em pleno paradigma do Estado Democrático de Direito.
Resquício absolutista
De fato, o estudo da história do Direito — da mesma maneira que a teoria, a filosofia e a sociologia, assim como as demais disciplinas propedêuticas — está em extinção. Se é verdade que, de um lado, a Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça repristinou a chamada “formação humanística”, de outro, todos sabem que isso não passou de uma empulhação para inflacionar ainda mais o mercado dos concursos públicos, na medida em que essas mesmas disciplinas vêm sendo, gradativamente, suprimidas das grades curriculares, dando lugar às disciplinas práticas, que denotam o caráter profissionalizante que vem sendo imposto aos cursos de Direito.
O que isso tem a ver com o tema? Tudo. Explico: consultando a doutrina manualesca brasileira — seja ela penal ou constitucional —, observa-se que os autores se limitam a distinguir os institutos da anistia, da graça e do indulto, não fazendo qualquer referência à sua criação ou mesmo à sua aplicação no Direito Comparado.
Aprofundando a pesquisa, todavia, encontram-se relatos do perdão no Direito grego e romano. Willian F. Duker, em um belo ensaio intitulado The President's Power to Pardon: A Constitutional History, publicado, em 1977, na William & Mary Law Review (clique aqui para ler), investiga oclemência, instituída pelos ingleses ainda durante a Idade Média e aperfeiçoada no início da modernidade.
No século XVI, com o surgimento do Estado moderno — ainda na sua versão absolutista — e a concentração do poder ilimitado nas mãos do soberano, o indulto se torna um importante (e paradoxal) instrumento em favor do indivíduo contra as arbitrariedades do Leviatã e, sobretudo, da Santa Inquisição.
O que não fica suficientemente claro é por que o constitucionalismo liberal — refiro-me especialmente às Constituições americana (1787) e francesa (1791), ambas resultantes de processos revolucionários (e talvez esta seja uma chave de leitura) — manteve a tradição de um instituto jurídico absolutista contrário às noções de devido processo legal e de separação dos Poderes que caracterizam o Estado de Direito.
Nesse mesmo sentido, inclusive, merece destaque recente decisão do Tribunal Supremo espanhol, que arquivou o processo movido contra Zapatero e seu ministro da Justiça por beneficiarem, arbitrariamente, o banqueiro Alfredo Sáenz, porém reconheceu, expressamente, que o indulto — regulado por uma Lei de 1870 — é uma “herança do absolutismo” na medida em que não exige nenhum tipo de justificação (clique aqui para ler).
Segundo o relator do caso, Perfecto Andres Ibañez, trata-se se um instituto de “no facil encaje, en principio, en un ordenamiento constitucional como el español vigente, presidido por el imperativo de sujeción al derecho de todos los poderes, tanto en ordem procedimental como sustancial de sus actos; y, en consecuencia, por el deber de dar pública cuenta del porqué de lós mismos”.
Na verdade, como sempre refere Calvo González, meu querido amigo de Málaga, o indulto representa um arcaísmo jurídico que se conservou, anacronicamente, no interior da arquitetura do Estado Constitucional de Direito: las indulgencias deberiam quedarse reservadas a los papas.
Aliás, por coincidência ou não, na véspera deste natal, o Papa Bento XVI concedeu indulto ao ex-mordomo, Paolo Gabriele, que foi condenado em outubro pelo furto de centenas de documentos confidenciais do Vaticano e os repassou à imprensa (clique aqui para ler).
Redução de custos
De acordo com as informações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, o indulto natalino decretado em 2011 beneficiou cerca de 4,5 mil apenados. Estima-se que, neste ano, o número de agraciados será ainda maior. Mais do que qualquer outra coisa, o indulto natalino é uma necessidade do sistema penitenciário. A abertura de vagas gerada permite que o ciclo se renove por mais um ano e o sistema não imploda definitivamente...
Acerca deste eficientismo penitenciário, Alexandre Morais da Rosa ensina que o controle é marcado pela questão dos custos: a Análise Econômica do Direito Penal – AEDP – defendida por muitos, dentre eles Posner, inclusive uns que se alastram no Brasil, defende que o “crime” precisa, ainda e necessariamente, atender o critério de custos. O cárcere é caro, custa muito (clique aqui para ler).
Dito de outro modo: prender e manter gente segregada se tornou, sob a perspectiva dos custos estatais, algo que não pode ser mais tolerado economicamente. Neste contexto, a Administração Pública precisa criar novas — e mais eficientes — modalidades de controle social, como são as penas alternativas, as medidas cautelares, o monitoramento eletrônico, as prisões domiciliares, os indultos, parcelamentos fiscais etc.
Na mesma linha, recentemente, Lenio Streck criticou a postura adotada, ano após ano, pelos governos: Não há vagas nos presídios. Solução do establishment: indultos natalinos e afrouxamento no cumprimento das penas (o Brasil é o único país do mundo em que um assaltante cumpre apenas uma quinta parte da pena). Alguém acha que as autoridades assim agem porque acreditam na “recuperação” dos presos? Claro que não. As autoridades agem assim porque fazem uma análise econômica. Os presídios — autênticas masmorras medievais — são como “hotéis”. As diárias vencem. Alguns saem, outros entram. O próprio governo concorda que os presídios são masmorras. Mas não investe. Prefere fazer “projetos”. Mesmo assim, são mais de quinhentos mil presos. E, então? (cliqueaqui para ler).
Em suma: se, por um lado, o indulto se revela uma herança absolutista incompatível com o paradigma da democracia constitucional, caracterizado pelo respeito ao devido processo legal, de outro, ele se transformou num importante mecanismo de uma política penitenciária de viés nitidamente neoliberal, marcada pela lógica da eficiência, voltada à redução de custos. Abrir velhas vagas é mais barato do que ter de construir novas vagas... Trata-se do resultado decorrente da equação que soma a razão cínica à razão econômica.
Garantia democrática?
Muito embora todo o reconhecimento e prestígio conferidos à tese formulada por Otto Bachof — cujo contexto histórico raramente vem esclarecido (clique aqui para ler) —, a doutrina mais abalizada vem rejeitando a hipótese de normas constitucionais inconstitucionais.
Uma rápida olhada no Direito Comparado permite concluir que, em que pesem as especificidades e os diferentes procedimentos adotados, o instituto do indulto continua figurando nas Constituições de diversos países: Estados Unidos (artigo II, 2); Alemanha (artigo 60, 2, 3); França (artigo 17); Itália (artigos 79 e 97); Espanha (artigo 62, i); Portugal (artigo 134, f); Argentina (artigo 99, 5); Colômbia (artigo 150, 17); e Peru (artigo 118, 21). Aliás, no Peru, ocorrem, neste momento, diversas manifestações populares pugnando pela rejeição do pedido de indulto formulado pela família do ex-presidente Alberto Fujimori, condenado a uma pena de 25 anos de prisão pelo cometimento de crimes de violação de direitos humanos e de corrupção.
Nesse contexto, existindo previsão expressa na Carta brasileira (artigo 5º, inciso XLIII; e artigo 84, inciso XII), não haveria como sustentar a inconstitucionalidade do instituto do indulto (coletivo) e da graça (individual). Sobre isso, tudo indica que não pairam dúvidas. A questão a saber é: poderíamos reformar — leia-se “alterar” ou até mesmo “revogar” — os dispositivos que tratam do indulto no Brasil por meio de uma emenda?
Ou melhor: seria o indulto uma garantia constitucional? Caso positivo, estaria ele sob a blindagem das cláusulas pétreas? Todavia, penso que a resposta é não (para as duas questões). Isso porque o simples fato de o artigo 5º, inciso XLIII, elencar os crimes insuscetíveis de graça (indulto individual), não assegura ao réu qualquer direito (subjetivo) perante o Estado. Trata-se, ao contrário, de um mandato de criminalização.
De outro lado, a norma prevista no artigo 84, inciso XII e parágrafo único — segundo a qual cabe ao chefe do Poder Executivo e aos seus delegados conceder indulto e comutar penas — estabelece uma competência, ligada ao exercício de uma prerrogativa do presidente, cujo teor não implica nenhum dever de prestação (positiva) do Estado.
À guisa de conclusão, recordemos as palavras de Beccaria, em sua célebre obra, Dos delitos e das penas (1784), na qual já antevia a prescindibilidade do indulto nos sistemas jurídicos produzidos democraticamente: a clemência, virtude que, às vezes, foi para o soberano o suplemento de todos os deveres do trono, deveria ser suprimida de uma legislação perfeita em que as penas fossem brandas e o método de julgamento regular e rápido. Esta verdade poderá parecer crua para quem vive na desordem do sistema penal, onde o perdão e a graça são necessários, na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2013
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