O salário por produção pode passar a impressão de ser o melhor sistema se considerado o interesse individual de cada trabalhador, na medida em que, em princípio, pode resultar em maior rendimento. Essa ideia, no entanto, se desfaz diante da perspectiva de que o melhor para o grupo — ou para a sociedade — não é o lucro imediatista, mas sim a preservação da saúde dos trabalhadores, uma vez que todos terão de pagar pela sua assistência social quando ele se adoentar ou se acidentar, precisando do auxílio do INSS. Em uma perspectiva mais ampla, o fim do salário por produção também é mais benéfico para cada trabalhador, uma vez que, ao preservar sua saúde, ele poderá estender sua vida produtiva e continuar sustentando sua família com o fruto do seu trabalho por muito mais tempo.
Esse foi o entendimento do juiz Renato da Fonseca Janon, da Justiça do Trabalho de Matão (SP), ao determinar que a Usina Santa Fé se abstenha de pagar aos empregados o chamado salário por produção, calculado por tonelada de cana colhida por trabalhador. Cabe recurso no Tribunal Regional do Trabalho de Campinas (SP).
A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho. Com o objetivo de proteger a integridade dos trabalhadores, o procurador Rafael de Araújo Gomes, de Araraquara (SP), ingressou com ação contra a usina, após inquérito que constatou excesso de trabalho.
Na petição inicial da Ação Civil Pública, o procurador se apoia em teses, estudos e casos concretos para demonstrar que a morte de cortadores de cana advém do salário por produção, já que esse sistema de remuneração provoca a necessidade de os trabalhadores aumentarem o esforço despendido no trabalho.
Na sentença, o juiz acata os argumentos do procurador e apresenta, em 112 páginas, outros estudos que fundamentam a prática nociva do salário por produção. “Diversas pesquisas acadêmicas, elaboradas com o rigor da metodologia científica, já confirmaram que, pela sua própria natureza, o corte manual de cana de açúcar é um trabalho insalubre, penoso e degradante, quadro que é agravado pela remuneração por produção”, diz Janon.
Uma das teses apresentadas se refere a um estudo elaborado por acadêmicos que faz analogia ao corte de cana e à maratona, apontando que ambas geram praticamente o mesmo nível de desgaste físico. A pesquisa apresenta números que dão a dimensão do esforço realizado pelos cortadores durante a jornada de apenas um dia: eles desferem uma média de 3.792 golpes com o podão, realizam 3.394 flexões de coluna e levantam cerca de 11,5 toneladas de cana.
Outras referências literárias e artigos técnicos também são citados na sentença, os quais afirmam que, quando a necessidade de regulação da temperatura corporal aumenta, o sistema cardiovascular pode tornar-se sobrecarregado durante o exercício da atividade de corte, especialmente no calor, já que deve transferir alta taxa de fluxo sanguíneo para a área entre a pele e os músculos, deixando as demais com pouca oxigenação.
O juiz cita também decisões da Justiça e ressalta: “Como se vê, trata-se de realidade que já é amplamente conhecida pelo TRT da 15ª Região e até mesmo pelo TST, tribunais que, em inúmeros acórdãos, sacramentaram o entendimento de que o corte de cana é um trabalho exaustivo, penoso e degradante, sendo o pagamento por produção verdadeira cláusula draconiana que somente aumenta ainda mais o desgaste sofrido pelo trabalhador. Não é por outro motivo que, recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho reformulou a redação da Orientação Jurisprudencial 235 da SDI/TST para fazer ressalva expressa ao trabalho do cortador de cana-de-açúcar”.
De acordo com o juiz, o Poder Judiciário não pode ignorar a realidade social a seu redor, pois, se o fizer, ele é que será ignorado pela sociedade. “Os conflitos sociais que se avolumam no país decorrem dessa visão míope e mercantilista, que não dá o devido valor ao trabalho humano”, diz.
Em sua argumentação, Janon traça um paralelo entre a atividade de corte de cana e o processo histórico da escravidão, com base no excesso de trabalho. “A ideia de que o trabalhador rural é apenas um fator de produção para ajudar a enriquecer ainda mais os proprietários das terras, como se não passasse de um servo da gleba prestando vassalagem ao senhor feudal, é uma herança atávica de nossa cultura colonial, que remonta ao tempo das sesmarias e das capitanias hereditárias”, afirma. “Urge, portanto, que aprendamos com as lições da história para não incorrermos nos mesmos erros do passado, sob pena de perdermos o presente e comprometermos o futuro.”
O juiz continua, em sua sentença: “Por qualquer ângulo que se examine a matéria, seja o biológico, o jurídico, o histórico ou o filosófico, a conclusão é sempre a mesma: o salário por produção deve acabar, sobretudo no corte de cana, pois coloca em risco a saúde e a vida do trabalhador, lembrando que incumbe ao Poder Judiciário o dever indeclinável de fazer com que a lei cumpra a sua finalidade social (art. 5º, LICC) em consonância com os princípios constitucionais”, conclui.
Com a decisão, a Usina Santa Fé deve abolir o sistema de pagamento por produção e adotar um sistema de pagamento salarial por tempo de trabalho, sob pena de multa de R$ 1,5 mil por trabalhador, a cada mês de descumprimento. A empresa deve pagar uma indenização por danos morais no valor de R$ 10 mil.
Além da ação em face da Usina Santa Fé, o MPT ingressou com processos contra outras empresas do segmento sucroalcooleiro, com os mesmos pedidos, nas regiões de Araraquara e Araçatuba (SP). Segundo o procurador Rafael de Araújo Gomes, a decisão pode abrir espaço para uma mudança no setor, baseada em práticas com base em outras formas de remuneração, que não atentem contra a saúde coletiva.
Clique aqui para ler a sentença.
ACP 0001117-52.2011.5.15.0081
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2013
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