Uma das maiores experts no assunto relata que a maioria das vítimas passa pelas rodovias – e não pelos aeroportos – e que leilões de virgens e trabalho escravo são comuns longe da capital paulista.
Apesar de ser o estado mais rico da federação e um dos principais corredores de atuação de redes de traficantes de pessoas no Brasil, São Paulo não tem uma política eficaz de combate ao crime e de suporte às vítimas. A política pública foi desconstruída. Catorze comitês que trabalhavam na prevenção, repressão e atendimento às vítimas não existem mais. O que há hoje em São Paulo é um espaço burocrático onde se faz apenas o encaminhamento dos casos. A seguir, os principais trechos da entrevista com a psicóloga Anália Belisa Ribeiro, ex-coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria Estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania à Marie Claire Online.
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Marie Claire Online - O fechamento desses comitês facilita a ação de traficantes de pessoas?
Anália Belisa Ribeiro - Sim. Organizações criminosas ocupam espaços deixados pelo Estado. Elas se fortalecem por não termos uma política pública estruturada que inclua, entre outras coisas, abrigos para as vítimas, inclusão no mercado de trabalho e atendimento em saúde. O que vemos são ações pontuais exitosas, mas que não acabam com o ciclo do tráfico. Combater esse crime é uma tarefa para as três esferas de poder: federal, estadual e municipal.
MC - São Paulo é origem e destino de vítimas do tráfico de pessoas?
ABR - O estado, infelizmente, importa e exporta pessoas. Tanto manda quanto recebe muita gente de fora. Há inúmeros casos de migrantes da América do Sul que são submetidos a trabalho análogo à escravidão em oficinas de costuras. São mulheres, homens, adolescentes. Há grandes empresas como Zara, C&A, Marisa e Collins que entraram na mira do Ministério do Trabalho por explorar mão de obra escrava, de pessoas que foram traficadas, quando terceirizam sua produção.
MC - Casos de tráfico são cada vez comuns no interior do Estado?
ABR - São. Muita gente acha que a maior parte das vítimas passa pelos aeroportos. Mas isso é um engano. O problema maior está nas rodovias, onde não há nenhuma fiscalização. Além de o interior servir como corredor, muitas oficinas de costura migraram para lá porque bairros como Pari e Brás ficaram muito visados pela polícia. Em regiões como a do Vale do Ribeira também já foram relatados muitos casos de leilões de virgens. É importante destacar que São Paulo também é um grande corredor para o comércio e exploração de travestis e transexuais.
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MC - As vítimas, em geral, são pobres e com pouca escolaridade?
ABR - As que são exploradas sexualmente, geralmente, são. Mas não é só a camada mais vulnerável da população que corre riscos. Trabalhei em casos de universitários de classe média alta que foram aliciados para fazer shows na Rússia e na Turquia. Quando chegaram lá, foram submetidos a trabalho análogo à escravidão. Ficaram confinados e foram obrigados a uma jornada de shows de mais de 12 horas por dia. Tiveram seus documentos retirados. Não receberam nenhum centavo do que tinha sido acertado no contrato. Um deles simulou um desmaio, pediu ajuda para um funcionário do hotel e conseguiu falar com a mãe. Ela entrou em contato conosco e nós acionamos o Ministério das Relações Exteriores para trazer os jovens de volta. As meninas do grupo já estavam sendo obrigadas a praticar sexo pago para pagar débitos da viagem.
MC - Como tratar a dor psíquica das vítimas de tráfico?
ABR - As vítimas, normalmente, são acometidas de estresse pós-traumático. Quando este quadro não é devidamente tratado, pode haver repercussões seriíssimas e sequelas irreparáveis – como fobias e surtos. Ainda não há uma boa articulação entre profissionais de saúde para o atendimento dessas pessoas. O que há são algumas iniciativas pontuais e interessantes, como a do Núcleo de Psicanálise e Política da USP, que tem feito parcerias com a Casa do Migrante e ONGs que trabalham com a questão para tentar entender a dor das vítimas e identificar pontos de vulnerabilidade.
MC - Por que muitas vítimas não denunciam?
ABR - Numa situação traumática, é normal a vítima ter medo de falar e se posicionar porque existe um limite tênue entre o aliciador e o aliciado. As vítimas, muitas vezes, perdem suas referências por completo e o contato com suas famílias. Estão indocumentadas. Não há nada que garanta sua autonomia e o seu algoz pode ser a sua única referência. Muitas silenciam com medo de também irem para a prisão. Como acham que não entraram na situação obrigadas, se enxergam como cúmplices.
Marie Claire. 28/01/2013 - 11h16. por Solange Azevedo
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