“Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonham os nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, só o ex-condenado tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinquentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de condenados.”[1]
Sem dúvida, a privação da liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo, outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até maior. A falta de privacidade, privação de ar, de sol, de luz, de espaço em celas superlotadas[2], os castigos físicos (torturas), a falta de higiene, alimentação nem sempre saudável, doenças inimagináveis[3], violência e atentados sexuais cometidos ora pelo próprio companheiro de infortúnio, ora pelos próprios carcereiros ou agentes penitenciários, a humilhação imposta, inclusive aos familiares dos presos, o uso de drogas como meio de “fuga” e etc.[4]
Ao chegar a uma das penitenciárias do Estado, geralmente de grande porte e superlotadas, o condenado perde, além da liberdade, o seu nome que é substituído por um número de matrícula, muitas vezes perde sua roupa e recebe um uniforme, quando não perdem todos os seus pertences pessoais para outros presos ou até mesmo para os guardas do presídio, enfim, perde o condenado à prisão toda a sua identidade, sua honra, sua moral...
É uma ingenuidade, uma ilusão acreditar que aquele que sobreviveu, porque muitos morrem na própria prisão, a tudo isso, estará “ressocializado” podendo ser “reintegrado” à sociedade. Aquele que cumpriu pena privativa de liberdade estará fadado a marginalidade, estará estigmatizado pelos anos que lhe resta de vida.[5]
Quanto mais duradoura for a pena privativa de liberdade, maior serão suas contradições e mais distante estará o preso de uma adaptação à vida fora da prisão.[6] Por mais incrível que possa parecer, aquele que ficou preso durante anos acaba se incorporando a “sociedade prisional”, isto porque dentro das prisões existem outros costumes, outra linguagem, outros “códigos”, outras “leis” passam a vigorar, as quais são impostas pelo perverso sistema penitenciário. Aquele que ousar afrontar as normas estabelecidas pelo sistema certamente será punido, muitas das vezes, com a pena capital.[7]
Com o decorrer dos anos ocorre o fenômeno da “prisionização”[8], ou seja, à assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos, precipuamente, pelo internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propenso a melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações e atitudes do criminoso habitual. Na prisão, pois, o interno mais desenvolverá a tendência criminosa que trouxe de fora do que anulará ou suavizará.[9]
Na prisão, ao contrário do que alguns insistem em afirmar, “os homens são despersonalizados e dessocializados”.[10]
Referindo-se ao processo de prisionização Petry Veronese[11] afirma que:
O aprisionamento, ao invés de possibilitar o retorno deste indivíduo, praticamente torna esse objetivo inviável, sobretudo se considerarmos que as instituições de custódia acabam por ser as efetivadoras do fenômeno da prisionização, ou seja, desencadeiam um processo de aculturação, o qual consiste na assimilação pelo detento dos valores e métodos criminais dos demais reclusos...
Na maioria das vezes, quando afirmamos que “o preso está apto para o convívio social” ou que “o preso está regenerado” estamos ocultando o que de fato ocorreu com aqueles que passaram alguns anos encarcerados. Na verdade o que ocorre é uma pseudo “regeneração”, pois aquele homem ou mulher que passou por uma prisão já não é mais aquele homem ou aquela mulher.[12] O “regenerado”, o “reintegrado”, o “reeducado”, o “reabilitado” e o “apto” para o convívio social, foram na realidade “domesticados” pelo sistema penal.
Reportando-se aos “recursos para o bom adestramento” Foucault afirma que:
O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício...[13]
Para tentarmos entender o que ocorre no cárcere é necessário ouvir o que tem a dizer aqueles que tiveram o infortúnio de padecer por esta que, sem dúvida, é uma das mais terríveis experiências pela qual pode um ser humano passar em sua vida. Neste sentido, preciosas são as palavras de Dostoievski[14] em sua obra autobiográfica “Recordação da Casa dos Mortos”, onde o escritor russo descreve o período de 4 anos em que esteve preso em um presídio na Sibéria, quando diz que:
Já disse que durante os meus anos de presídio jamais constatei entre os meus companheiros o menor remorso, o menor rebate de consciência; no seu foro íntimo, a maioria deles considerava que agiria bem. Isso é um fato. Evidentemente, a vaidade, os maus exemplos, as bravatas, o respeito humano, devem, nesse caso, ser levados em consideração. Mas, por outro lado, quem se pode gabar de haver sondado essas almas decaídas, de ter descoberto no seu mistério o que fica escondido ao universo inteiro? De qualquer forma, porém, no decorrer de tantos anos, eu deveria ter surpreendido em alguns daqueles corações um indício qualquer de sofrimento, de desespero. E, positivamente, nada descobri. É claro que não se devem fazer julgamentos de acordo com ideias preconcebidas e decerto a filosofia do crime é mais completa do que se imagina. O presídio, os trabalhos forçados, não melhoram o criminoso; apenas o castigam, e garantem a sociedade contra os atentados que ele ainda poderia cometer. O presídio, os trabalhos forçados, desenvolvem no criminoso apenas o ódio, a sede dos prazeres proibidos, e uma terrível indiferença espiritual. Por outro lado, estou convencido de que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador aparente. Suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o, e depois nos apresenta como um modelo de regeneração, de arrependimento, o que é apenas uma múmia ressequida e meio louca.
Diante deste sistema penal perverso, degradante, desumano, torpe e cruel, soma-se a hipocrisia do Estado em ocultar os verdadeiros fins da pena, é necessário buscarmos alternativas que, embora longe de solucionar os problemas, possam, ao menos, amenizá-los. Mas, para isso, urge que admitamos o fracasso da pena de prisão[15] e a falácia do atual sistema. É preciso reconhecer que este sistema tem produzido mais criminosos, além de se constituir, nunca é demais dizer, um verdadeiro incremento da reincidência.
Assim como hoje se reconhece as atrocidades das penas medievais, tais como: morte na roda, na guilhotina, no fogo, verdadeiro suplício do corpo e da alma, no futuro será constato a crueldade das penas privativas de liberdade que serão estudadas como parte de uma história sombria e degradante.
[1] SILVA, Evandro Lins e. De Beccaria a Filippo Gramatica. Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Renavan, 1991, p. 40. No mesmo sentido Roberto Lyra para quem “a prisão é causa de doenças e vícios. Não é o lugar que vicia ou enlouquece é a condição, é a vida do preso. Doenças físicas e não somente morais e mentais. Ninguém contesta que a prisão enriqueceu o elenco psiquiátrico com a chamada psicose carcerária, psicose de situação, hoje redistribuída e rebatizada, e que propicia outras doenças e perturbações mentais, além de novos capítulos da patologia sexual. Pretende-se até generalizar o anexo penitenciário junto as prisões. O são fica meio louco. O meio louco fica louco por inteiro. E o louco? É preciso recorre ao superlativo. O ótimo torna-se péssimo e aprende a dissimular a maldade. A prisão, fábrica e escola de reincidência, habitualidade, profissionalidade, produz e reproduz criminosos, causa crimes e contravenções. O que ocorre é que infrações penais intramuros costumam ser toleradas ou tratadas como transgressões disciplinares pelo arbítrio criminoso da administração. Só aparecem os casos de homicídios e de repercussão inevitável. Os responsáveis ignoram ou oficializam crimes, por omissão ou mesmo por ação. Há crimes de funcionários contra preso (em regra impunes) e vice-versa, de funcionários e particulares (inclusive os presos) contra a administração e outros bens ou interesses jurídicos penalmente protegidos. Registram-se, também, relações e associações celeradas de dentro para fora e de fora para dentro. Planos de fuga e crimes, organizações de equipes, aperfeiçoamento em contato com os mais peritos. A prisão é o meio criminal por excelência.” (LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: Konfino, 1975, p. 184/185). Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que: “A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante (...) O preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privado de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais, etc.).” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.135).
[2] Arminda Bergamini Miotto vê nas grandes penitenciárias, bem como na superpopulação carcerária fatores de incremento à reincidência, segundo a professora “nas penitenciárias de grande porte, geralmente situadas na região da capital para onde convergem todos os condenados da respectiva Unidade da Federação, lotando-as e superlotando-as, as circunstâncias fazem com que a situação seja essa, ainda que a administração entenda que deva ser diferente e deseje que possa sê-lo. Sem falar no que, ademais, costuma acontecer numa penitenciária de grande porte, provavelmente superlotada, aí está uma relevante explicação para o tão grande número de reincidentes entre os egressos.” (MIOTTO, Arminda Bergamini. O controle social sob o ponto de vista criminológico. A prevenção da reincidência. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, 22, out/dez. 1985).
[3] Sobre as doenças na cadeia, o médico Drauzio Varella nos informa que: “As doenças de pele, por exemplo, epidêmicas nas celas apinhadas, compreendiam a dermatologia inteira: eczemas, alergias, infecções, picadas de percevejos, sarna e a muquirana, um ácaro ousado que se esconde nas dobras das roupas, capaz de saltar longas distâncias de uma pessoa à outra.” ( VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 91).
[4] Hulsman observa que: “o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril.” (HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói -RJ, Luam, 1993, p. 62).
[5] Carnelutti observa que: “Ao aproximar-se do fim do período prisional, aguarda o sentenciado, com alegria, a liberdade. Ao sentir-se livre das grades, contudo, sente o seu drama: não consegue emprego, em virtude de seus maus antecedentes. Nem o Estado e nem o particular lhe facilitam uma colocação. A pena, portanto, não termina para o sentenciado.” (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995, p. 8).
[6] Neste sentido Ariosvaldo de Campos Pires para quem “quanto maior o tempo de prisão, maiores os riscos de degradação do condenado, impedindo a sua desejável recuperação e aumentando, conseqüentemente, os riscos da sociedade, que um dia o terá de retorno”. (PIRES, Ariosvaldo de Campos. Alternativa à pena privativa de liberdade e outras medidas. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 5, nº 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro-dezembro 1997, p. 75-76).
[7] Maria Lúcia Karam, informa que: “Grande parte destes homicídios brutais, entre os próprios presos, nasce da convivência forçada, que faz com que qualquer incidente, qualquer divergência, qualquer desentendimento, qualquer antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporções insuportáveis. O desgaste da convivência entre pessoas, que, eventualmente, não se entendam, aqui é inevitável. As pessoas que não se ajustam, os inimigos, são obrigados a se ver todos os dias, a ocupar o mesmo espaço, o que, evidentemente, acirra os ânimos, eleva a tensão, exacerba os sentimentos de ódio, levando, muitas vezes, a que um preso mate outro, por motivos aparentemente sem importância.” (Dos crimes, penas e fantasias, ob. cit., p. 182).
[8] Para Zaffaroni, “esta imersão cultural não pode ser interpretada como uma tentativa de reeducação ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado da ideologia do tratamento; suas formas de realização são totalmente opostas a este discurso, cujo caráter escamoteador é percebido até pelos menos avisados. A mera circunstância de que 70% dos presos da região não estejam condenados mostra a evidente confissão da falsidade do discurso ressocializante.” (Em busca das penas perdidas..., ob. cit. p. 136). Alessandro Baratta se refere ao processo de socialização ao qual é submetido o preso, sob um duplo ponto de vista: da “desculturação” (desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade) e o da “aculturação” ou “prisionização”. Este último, trata-se, segundo ele, “da assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária...” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 184).
[9] THOMPSON, Augusto. Ob. cit., p. 95-96.
[10] HULSMAN, Louk. Ob. cit., p. 63.
[11] VERONESE, Josiane Rose Petry. O sistema prisional: seus conflitos e paradoxos. http://ccj-gw.ccj.ufsc.br/nejusca/doutrina/prisão.htm. 2.1.2002.
[12] Veja-se o caso, descrito por Augusto Thompson, do interno que servia como garção numa solenidade festiva na Penitenciária Lemos Brito e que era exibido como o exemplo da capacidade regeneradora da prisão. (THOMPSON, ob. cit. p. 14-15).
[13] FOUCAULT, Michel. Ob. cit. , p. 153.
[14] DOSTOIEVKI, Feodor Mikhailóvitch. Recordação da casa dos mortos. Tradução de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, p. 48.
[15] Segundo Pedro Armando Egydio de Carvalho, “estatísticas confiáveis, relatadas em trabalhos oficiais, dão conta da ineficácia do aprisionamento. Da parte do Estado, a manutenção do presidiário é caríssima, em torno de três salários mínimos mensais; ademais, o custo, em virtude de serem os cárceres fatores de incentivo à criminalidade futura, é um desperdício do dinheiro público, aplicado para nutrir uma reincidência criminal da ordem de 47%.” (CARVALHO, Pedro Armando Egydio de. O sentido utópico do abolicionismo penal, in Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 143).
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas.
Revista Consultor Jurídico, 16 de novembro de 2012
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