Uma discussão importante tem se acentuado atualmente no campo das competências recursais. Qual órgão recursal tem competência para apreciar os recursos derivados das decisões que concedem ou rejeitam as chamadas “medidas protetivas de urgência” criadas pela Lei Maria da Penha (11.343/2006)?[1] A depender da linha seguida, ou a Câmara Criminal ou a Câmara Cível do Tribunal de Justiça, o que também significa alterar alguns requisitos de admissibilidade do remédio a ser interposto. Sem a pretensão de esgotar definitivamente o tema, nos inclinamos à vocação penal da matéria, reclamando para si, portanto, as soluções do diploma processual criminal.
A primeira observação que se faz é que a determinação da natureza jurídica de um instituto vem da sua relação com o objeto da disciplina paradigma. Este método de classificação vem desde Roma, que criou a subdivisão entre direito público e privado[2].
As medidas protetivas, na forma em que trazidas pela Lei Maria da Penha, nada mais são do que providências judiciais cautelares e autônomas[3] com vistas a garantir a integridade física ou psíquica da vítima em situação de violência doméstica. Assim, a conclusão por sua natureza jurídica cível (privada) cai naturalmente quando se vê que este ramo do direito regula relações entre indivíduos, sem a intervenção direta do Estado. A discussão é estritamente entre particulares, sem participação estatal.
No caso das medidas protetivas, todavia, o interesse tutelado não é negociado entre particulares. O favor legal tem caráter social e reclama direta intervenção pública para produzir efeitos, tanto que é disparado através de comunicado à autoridade policial. Por isso, a natureza destas medidas afasta-se da noção de direito privado, pois atrelada diretamente e exclusivamente à presença constante do Estado na relação havida entre o autor do fato e a vítima. Logo, não pode ser confundida como um instituto de direito civil, com procedimento vinculado às regras do Código de Processo Civil.
O segundo argumento que se apresenta vem do próprio texto da Lei Maria da Penha. Geograficamente, o legislador sempre utilizou o Código de Processo Penal como o primeiro regramento subsidiário[4]. E mais, no texto do artigo 13, o legislador insistiu na preferência mesmo quando se refere “ao julgamento e à execução das causas cíveis”, pois diz que à ela se aplicará “as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil”, privilegiando o estatuto de processo criminal.
O mesmo raciocínio se vê no artigo 33. Este ressalva que “Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.” Mais uma vez a vertente criminal é privilegiada pelo legislador.
Aliás, é possível dizer que no artigo 33 ele dá sua opinião clara quanto à questão processual, pois remete expressamente “à legislação processual pertinente”. Neste toar, a mens legis quis claramente dizer que a legislação processual aplicável será aquela adequada à natureza da medida protetiva deferida. Ou seja, o operador do direito haverá de classificar, antes de mais nada, quais os bens jurídicos atingidos pela decisão, para só depois identificar o recurso adequado.
Comungamos, por isto, com a posição de Maria Berenice Dias[5], quando afirma que “Dispondo a medida protetiva de exclusivo caráter de natureza criminal, o eventual recurso cabível é o recurso em sentido estrito, em face da taxatividade do rol legal, a ser encaminhado às Câmaras Criminais dos Tribunais de Justiça.”
A posição nos parece incontestável[6]. As medidas protetivas têm como causa primeira a ocorrência de algum ilícito penal, que coloca em risco a integridade física, psíquica ou patrimonial da mulher. Na imensa maioria das vezes, vêm subsidiadas em acusações de ameaças e lesões corporais e, quando deferidas, atinge — coloca sob risco — a liberdade do acusado, especialmente a de ir e vir, valor tradicionalmente atrelado às competências penais[7]. Basta ver o texto do artigo 22 da Lei 11.340/06[8]. De todas as medidas sugeridas pelo legislador, a única que não implica em cerceamento da liberdade do acusado é a de pagamento de alimentos (inciso V). Qualquer outra automaticamente implicará em imediata prisão do acusado em caso de descumprimento.
Há que se ressaltar ainda que a definição da natureza penal da medida protetiva a ser atacada pela via recursal não define apenas a competência do órgão julgador, Turmas e Câmaras Criminais dos Tribunais de Justiça. A mudança também interfere, além da escolha do recurso a ser interposto — recurso em sentido estrito para decisão interlocutória, apelação, para sentença final —, nos prazos para interposição[9], no sistema de contagem destes[10] e no preparo, valendo dizer que, para fazer valer o princípio da fungibilidade recursal, interposto agravo ao invés do recurso em sentido estrito, por exemplo, sempre se deverá de se obedecer o prazo menor[11] para o recurso ser conhecido.
Assim, não restam dúvidas de que, na quase totalidade dos casos, a competência recursal para rever decisões judiciais que fixam medidas protetivas será da instância criminal. Excetuam-se, tão somente, as medidas que tenham caráter exclusivamente civil, como é o caso da fixação pura de alimentos ou outra medida que não traga restrição ou ameace a liberdade de ir e vir do ofensor.
Para encerrar, é importante dizer que, sendo a medida deferida de duplo caráter (alimentos e proibição de se aproximar da ofendida, por exemplo), o princípio da unicidade recursal impede a interposição de dois recursos[12]. Por isto, a vertente criminal prevaleceria, ao som da própria precedência ditada pela Lei Maria da Penha na aplicação dos diplomas processuais supra referida, e pela escala constitucional de valores, que põe a liberdade de ir e vir acima de qualquer interesse pecuniário.
AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. Consultor Jurídico, 2009, disponível emhttp://www.conjur.com.br/2009-set-27/sistema-inviabiliza-medida-protetiva-urgencia-lei-maria-penha, acesso em 23 de outubro de 2012.
CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista, Violência Doméstica, 2ª Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha na justiça, 2ª ed, São Paulo: RT, 2010.
GOMES, Luiz Flávio, Coordenação. Legislação Criminal Especial, v. 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 5ª Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D., Derecho Romano. Buenos Aires: Editoral Astrea, 2001.
[1] Em defesa da competência cível do instituto, com atribuição às Câmaras Cíveis, a sempre abalizada e respeitável opinião do eminente Desembargador Carlos Alberto França, emitida no julgamento do Agravo de Instrumento n. 201093758740, no qual tivemos a honra de defender a posição contrária, pela natureza criminal.
[2] RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D., Derecho Romano. Buenos Aires: Editoral Astrea, 2001.
[3] Há discussão a respeito da autonomia da medida cautelar, se é satisfatória ou acessória à ação penal.
[4] “Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.”
[5] A lei Maria da Penha na Justiça, 2ª ed, São Paulo: RT, 2010, p. 188.
[6] Neste sentido, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, na conclusão n. 2, do Congresso “Lei 11340/2006 Um ano de vigência. Avanços e retrocessos, sob o ponto de vista prático, na opinião dos operadores do direito” (12/12/2007): “Conclusão n. 2. São da competência do juízo criminal as medidas protetivas de natureza satisfativa”.
[7] Neste sentido, a Corte Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Conflito de Competência n. 20080020137058 CCP, Relator ESTEVAM MAIA, Conselho Especial, julgado em 11/11/2008, DJ 28/01/2009 p. 47.
[8] “Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.”
[9] CPP: “Art. 586. O recurso voluntário poderá ser interposto no prazo de cinco dias.”; “Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias”.
[10] “Art. 798. Todos os prazos correrão em cartório e serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou dia feriado. § 1o Não se computará no prazo o dia do começo, incluindo-se, porém, o do vencimento. § 5o Salvo os casos expressos, os prazos correrão: a) da intimação;”
[11] A propósito deste tema, vide julgado que representa a posição do STJ: EDcl no REsp 464.425/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/08/2006, DJ 11/09/2006, p. 246.
[12] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, 5ª Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 93.
Kisleu Ferreira é advogado em Goiás.
Revista Consultor Jurídico, 21 de novembro de 2012
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