Analisando o tipo penal do artigo 22 da Lei 7492, de 1986, que descreve a conduta de efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país, venho percebendo certo equívoco dos operadores do direito na sua aplicação em relação às pessoas que recebem gorjetas em moedas estrangeiras no Brasil: carregadores de malas, mensageiros, taxistas, balconistas de hotéis, etc. O crime previsto na lei do “colarinho branco” exige para sua configuração o dolo específico ou o especial fim de agir em promover a evasão de divisas do país.
É cediço que as pessoas referidas acima não têm o objetivo de promover a evasão de divisas do país e sim ganhar um pequeno percentual na venda da moeda estrangeira para terceiros, tornando a conduta do artigo 22 atípica.
Para que a conduta não deixe de ser reprimida, a prática de efetuar câmbio de forma clandestina deve ser combatida com a correta tipificação, aplicando-se o artigo 4º, alínea “a”, da Lei 1.521, de 1951 (cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito). Percebe-se pela conduta descrita no tipo da lei de economia popular que não é exigida a promoção da evasão de divisas do território nacional para a configuração do delito.
O próprio STJ, por meio da 3ª Seção, entendeu que o comércio clandestino de dólares e travelerscheques entre particulares não é crime contra o sistema financeiro nacional:
(1) STJ, RHC 17.001/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 08.03.2005, DJ 28.03.2005 p. 291).
(2) "Em se tratando de comércio clandestino de dólares e travelers cheques entre particulares, não há falar em crime contra o sistema financeiro nacional, eis que ausente qualquer prejuízo a bens, serviços ou interesses da união" (STJ, Cc 18.973/Mg, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Terceira Seção, Julgado Em 12.11.1997, DJ09.12.1997 P. 64593).
(3) STJ, REsp 189.144/PR, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17.02.2005, DJ 21.03.2005, p. 302.
A apuração da conduta prevista no artigo 4º, alínea “a”, da Lei de Economia Popular (Lei 1521, de 1951) é de atribuição da Polícia Civil e a competência para o seu processamento é do juizado especial criminal estadual do lugar onde foi praticada a infração penal, tendo em vista que a pena máxima cominada para o delito é de dois anos de detenção.
Em se aplicando o tipo penal do artigo 22 da Lei 7.492, de 1986, estar-se-ia subtraindo do autor do delito o direito de aceitar eventual proposta de transação penal e outros benefícios previstos na Lei 9.099, de 1995.
Ainda que não fosse aceita pelo autor do fato ou mesmo não oferecida proposta de transação penal pelo Ministério Público em razão dos impedimentos previstos no artigo 76, parágrafo 2º, incisos I, II e III da Lei 9.099, de 1995, a pena máxima para a infração penal do crime do artigo 4º, alínea “a”, da Lei 1.521, de 1951, seria no máximo de dois anos de detenção, o que possibilitaria ainda ao condenado o benefício do sursis previsto no artigo 77 do Código Penal.
A tipificação equivocada pelas autoridades policiais com a remessa dos autos de inquérito à Justiça incompetente poderá ocasionar a anulação de todos os atos processuais futuros caso a peça acusatória seja recebida, pois a renovação destes atos, além de onerosa e demorada, poderá dar causa à extinção da punibilidade pela prescrição e retirar do Estado o ius puniendi deixando a conduta de ser reprimida.
Sendo o Direito Penal a ultima ratio, é sempre preferível aplicar a interpretação da lei menos gravosa e o afã de combater o crime pode acabar tendo efeito exatamente contrário, causando a anulação do procedimento pela tipificação inadequada da conduta concreta.
Rafael Potsch Andreata é delegado de Polícia Federal e Pós Graduado em Direito Penal e Processual Penal.
Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2011
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