O albergue “Cor da Prefeitura”, destinado a moradores de rua, funciona atualmente no número 3.041 da Rua Cardeal Arcoverde, no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. O governo municipal pretende transferi-lo para o número 1.968 do mesmo logradouro, entre as Ruas Simão Álvares e Deputado Lacerda Franco, porque o novo lugar apresenta melhores condições de funcionamento e mais leitos.
No entanto, a proposta de mudança não agradou moradores e comerciantes locais, que se opuseram e organizaram um abaixo-assinado contrário à instalação do abrigo no trecho mais nobre e residencial da rua. No final de setembro um pedido, com 1.200 assinaturas, para impedir essa transferência foi encaminhado ao Ministério Público Estadual (MPE), que, além de indeferir a solicitação, comparou a iniciativa às ações higienistas da Alemanha nazista.
Os integrantes do abaixo-assinado justificaram o pedido com base na tese de que o comércio não sobreviveria à mudança, pois a clientela se deslocaria para outros centros comerciais, e de que a população local ficaria “acuada em suas casas” diante dos novos freqüentadores.
O promotor Maurício Antonio Ribeiro Lopes indeferiu o pedido encaminhado à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, pela Comissão de Moradores e Comerciantes (entidade não formal). Lopes entendeu que a representação fora ofertada por entidade inexistente, que não merecia consideração jurídica, tendo em vista seu caráter estritamente discriminatório, segregacionista e elitista.
"É de provocar inveja a qualquer higienista social do III Reich a demonstração de tal insensibilidade. A ideia - ou que ocupa o que deveria ser o seu lugar - associando pobreza e criminalidade e violência não tem guarida teórica e ética", escreveu.
Inconformada com as comparações feitas pelo promotor, uma das síndicas que assinaram o documento respondeu “Então bota os sem-teto na porta da casa dele. Será que ele aceita?". Ao jornal O Estado de S. Paulo, a senhora também negou a existência de preconceito contra os sem-teto e afirmou que colabora com um albergue do Brás, no centro da cidade.
Outra justificativa, infundada, citada por uma moradora para afastar o albergado do bairro foi o caso isolado de um corpo encontrado em um freezer em desses estabelecimentos, há alguns anos atrás. Horrorizada, questionou: “Você acha isso uma coisa normal? Eu não acho.”, como se atrocidades e episódios de violência só ocorressem entre cidadãos – se é que poderiam ser assim considerados por ela – de baixa-renda.
Além disso, foi sugerido um local alternativo para instalação do albergue, nos arredores da Subprefeitura de Pinheiros, onde haveria muitos galpões vazios. No entanto, a solução apresentada não levou em consideração o fato de lugar estar próximo à Marginal Pinheiros, o que dificultaria o acesso do público alvo.
Lopes qualificou a iniciativa como uma manifestação da “fúria pequeno-burguesa” e lamentou a desconsideração “de que o outro também é um titular de direitos nas mentes e corações da zona rica paulistana”. Observou, ainda, que os mesmos signatários não se insurgiriam contra a instalação do albergue “no último rincão da periferia da cidade”, como se percebe na proposta demonstrada acima.
O argumento, apresentado pelos atuais moradores do bairro, de que no local vivem famílias com crianças e jovens, demonstra o cultivo dessa intolerância pelas bases da sociedade, no próprio seio familiar, de onde se esperaria uma maior consciência e respeito às diferenças, a fim de que pudessem transmitir esses valores aos seus filhos, netos e etc.
Espera-se que essa geração de crianças e jovens possa escapar do “mesmo lastimável destino dos subscritores da representação e dos que a assinaram”, descrito pelo promotor.
Segundo bem colocado pelo próprio representante do Ministério Público: “A existência de instituições de ensino da região, ao invés de ser um entrave, é extremamente beneficiada com a instalação do albergue, proporcionando aos estudantes de modo mais facilitado o acesso à cultura da alteridade, a convivência plural, o exercício da solidariedade. Não se vê onde há perda, senão para o modo reacionário e o medo irracional de pensar e agir.”
Não é de hoje que se verifica um sentimento de intolerância arraigado em nossa sociedade, posto que se tem conhecimento de inúmeros atos motivados por preconceitos, como as agressões a supostos homossexuais, as discriminações diárias por causa de cor e classe social. Parece ser natural do ser humano excluir ou censurar todos aqueles que são, de alguma forma, diferentes, que não seguem um “modus vivendi” tido como “normal”. Assim, a aversão e o desrespeito aos sem-teto não fogem a esta “regra” – que deveria
Além de indeferir o pedido, Lopes enviou os nomes de seis síndicos que assinaram a petição para a Delegacia de Polícia Especializada em Crimes Raciais de Delitos de Intolerância (Decradi). Todos serão alvo de inquérito por intolerância social, prevista no artigo 5º, inciso XLI da Constituição.
Clique aqui e confira o inteiro teor do indeferimento.
IBCCRIM. (Érica Akie Hashimoto e Janaina Soares Gallo)
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