Em 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos vai decidir se mentir é um ato sujeito às duras penas da lei. A disputa judicial foi provocada por um membro eleito do conselho municipal da água em uma região da Califórnia que, ao descrever seus antecedentes em uma assembleia pública, em 2007, se declarou um herói de guerra, agraciado com uma "Medalha de Honra", a mais alta condecoração militar do país. O herói anônimo alcançou então a fama, por sua mentira patriótica. Foi processado pelo governo, condenado em primeira instância, absolvido em segunda. Na segunda-feira (17/10), a Suprema Corte aceitou decidir o caso "United States versus Alvarez", noticiam o USA Today e o New York Times.
Na verdade, a Suprema Corte vai decidir sobre a constitucionalidade da "Lei do Heroísmo Roubado" (Stolen Valor Act), promulgada pelo ex-presidente Bush, em 2006. Segundo a Wikipédia, a lei tipificou como contravenção federal a declaração falsa, por qualquer pessoa, de haver recebido qualquer condecoração ou medalha militar dos EUA. "Se condenado, o réu pode pegar até seis meses de prisão, a não ser que a mentira seja sobre o recebimento de Medalha de Honra e, nesse caso, a prisão pode ser de até um ano", diz a publicação. Mas, o USA Today afirma que Xavier Alvarez foi sentenciado a três anos em regime de liberdade condicional (e não "até um ano") e a pagar a multa de US$ 5 mil.
A questão é se a condenação de Xavier Alvarez viola o direito à liberdade de expressão, protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Juízes do tribunal de recursos, que reverteram a condenação anterior, desconfiam que o governo tentou, na verdade, atacar a liberdade de expressão, "só porque o caso é de uma mentira".
O juiz-chefe da 9ª Corte Distrital Alex Konzinski escreveu que sem uma forte proteção da Primeira Emenda, "o governo pode processar não apenas o homem que inventa uma história sobre o recebimento de uma Medalha de Honra, mas também os dentistas, que sempre dizem que não vai doer nenhum pouquinho". Segundo ele, "sem a proteção robusta da Primeira Emenda, as pequenas mentiras, os exageros e os engodos, que são uma parte integrante da comunicação humana, se tornariam alvos de censura", narra o USA Today.
Segundo o New York Times, o juiz Milan Smith Jr., escrevendo pela maioria (de uma comissão de três juízes), afirmou que a manutenção dessa lei pode abrir um precedente perigoso. "Não haverá uma barreira constitucional à criminalização de uma pessoa que mente sobre sua idade, seu peso, sua virgindade ou que diz ao policial que não excedeu o limite de velocidade na estrada ou que só bebeu um copo de cerveja". E sentenciou: "A triste verdade é que as pessoas mentem sobre alguns aspectos de sua vida ocasionalmente."
As vozes dissidentes dizem que a lei se refere apenas a mentiras cabeludas, como a da falsa declaração de recebimento de honras militares. O juiz que votou pela manutenção da pena aplicada a Alvarez rejeitou a tese da escorregadela da verdade e disse que "fazer declarações falsas sobre recebimento de honras militares é um subconjunto cuidadosamente definido de declaração factual falsa, que não merece proteção constitucional". Os advogados do governo, que apelaram da decisão que invalidou a lei, enfatizaram que as medalhas "expressam a gratidão da nação pelo patriotismo e pela coragem".
"Eu sou um marine (fuzileiro naval), aposentado há 25 anos. Me aposentei em 2001. Em 1987, fui condecorado pelo Congresso com a Medalha de Honra. Fui ferido muitas vezes pelo mesmo sujeito", Xavier Alvarez disse na assembleia pública. O governo descobriu que ele sequer pertenceu um dia a qualquer unidade das forças armadas, diz o New York Times. Agora, ele se defende: "Tudo o que estava fazendo é exercer o meu direito de liberdade de expressão".
A Suprema Corte, sob a chefia do ministro John Roberts, tem se mostrado favorável a demandantes que defendem a própria liberdade de expressão, julgando a favor das pessoas que fazem protestos em funerais militares (proibidos), de fabricantes de videogames violentos e distribuidores de material que mostra crueldade contra os animais.
A Suprema Corte também deverá decidir, no final do semestre judiciário, se a Comissão Federal de Comunicações deve regulamentar o uso de palavrões e de nudismo nos programas de televisão.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de 2011
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