terça-feira, 18 de outubro de 2011

PESQUISAS COM ANIMAIS



FOTO: PAULO VITOR/AE
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Hoje vou escrever sobre aquele que é, talvez, o tema mais delicado e mais polêmico no campo da bioética e do relacionamento da sociedade com a ciência de uma forma geral: as pesquisas com animais.
Ninguém gosta de ver imagens como esta aí de cima. Eu também não gosto. Mas o fato é que, sem as pesquisas com animais, a medicina moderna simplesmente não existiria. Todos os remédios que você, ou qualquer pessoa que você ama, já tomou na vida foi desenvolvido com base em pesquisas com animais. Garantido. (Ressaltando aqui que estou me referindo a medicamentos comprovados e não aos chazinhos da vovó para dor de barriga ou às ervas medicinais que você compra na feira.)
Da mais simples aspirina ao mais moderno antidepressivo ou quimioterápico, tudo passou por animais antes de chegar ao homem. Nenhuma das terapias contra o câncer, nenhuma das drogas antiaids, dos antihipertensivos ou redutores de colesterol … nem um simples colírio existiria hoje sem a experimentação animal.
O mesmo vale para vacinas e procedimentos médicos e cirúrgicos. Tudo precisou ser testado primeiro em animais para saber: 1) se funciona 2) se é seguro, e 3) qual a dosagem ideal, ou técnica ideal, etc. Em alguns casos é possível partir diretamente para testes clínicos em seres humanos, mas são casos excepcionais — em que se está tentando melhorar o uso de uma droga já existente, por exemplo.  Nenhuma autoridade séria vai autorizar um teste em seres humanos de algo que não tenha sido testado em animais antes. Primeiro porque seria extremamente arriscado e antiético. Segundo, porque sem as pesquisas com animais você nem saberia o que testar nas pessoas para começo de conversa. (Para cada medicamento que você compra na farmácia, pode ter certeza de que algumas dezenas, centenas ou até milhares de compostos foram testados, até chegar a um que realmente funciona.)
Por mais incômodo que isso possa ser para a nossa consciência, portanto, o fato é que devemos muito da nossa qualidade de vida hoje às pesquisas com animais. Imagine um mundo sem vacinas, sem farmácias e com a medicina limitada ao que se praticava 100 ou 200 anos atrás … A raça humana não seria extinta, mas a vida certamente seria muito mais sofrida (como era 100 ou 200 anos atrás, e ainda é, do ponto de vista da saúde, em muitos lugares onde a população não têm acesso a medicamentos modernos e serviços públicos de qualidade).
A primeira consideração que precisa ser feita nesse debate, portanto, é a seguinte: Seria melhor não ter de fazer experimentos com animais? Sim, sem dúvida! Mas qual o preço disso? Estamos dispostos a pagar com vidas humanas para evitar o sacrifício de ratos e camundongos?
Ser contra pesquisas com animais é negar todos os benefícios conquistados pela ciência aplicada à medicina. Sem o uso de animais, a única alternativa em grande escala é fazer experimentos diretamente em seres humanos … ou simplesmente parar de pesquisar. E, para ser fiel às suas convicções, nunca mais usar qualquer tipo de medicamento industrializado. Nem vacinar seus filhos. E se tiver câncer, sinto muito, vai ter de se virar com o chazinho da vovó.
Dito isso, é preciso fazer um esclarecimento importante: Ser a favor das pesquisas com animais não significa ser a favor de maus tratos ou indeferente ao sacrifício dos animais que são usados nessas pesquisas. De maneira alguma! Eu conheço vários pesquisadores que preferem não trabalhar com animais porque não se sentem à vontade com isso, apesar de reconhecerem a necessidade e a importância desse trabalho.
Também não significa que os cientistas devem ter liberdade total para fazer o que bem quiserem com animais. Todos os países que fazem pesquisa científica séria, incluindo o Brasil, possuem legislações específicas que regulamentam o uso de animais em laboratório. Todas as instituições de pesquisa são obrigadas a ter comitês de ética multidisciplinares, incumbidos de avaliar e aprovar (ou não) todo e qualquer projeto de pesquisa envolvendo o uso de animais. Há várias regras que precisam ser seguidas. A mais básica delas é que os animais devem ser tratados com respeito e o sofrimento deles, minimizado ao máximo. Todos os procedimentos devem ser feitos da forma mais indolor possível, com o uso de sedativos. O pesquisador precisa provar que seu estudo é relevante e que o uso dos animais é imprescindível para a sua realização. E deve sempre usar o menor número de animais possível. Cabe às instituições, às autoridades e aos próprios cientistas fiscalizar o cumprimento dessas regras, denunciar e punir aqueles que as violarem.
Claro que sempre vai haver aqueles que cometem abusos. De uma forma geral, porém, é um tema levado muito a sério pela comunidade científica. Ninguém tem prazer em fazer pesquisa com animais. Faz-se porque não há alternativa.
Em alguns casos, sim, é possível fazer apenas experimentos in vitro ou simulações em computador. Mas, na maioria das pesquisas biomédicas, não tem jeito … nenhuma cultura de células ou programa de computador consegue simular o funcionamento de um organismo inteiro, com a complexidade de seus órgãos, tecidos, e suas milhares e milhares de moléculas interagindo umas com as outras em tempo real a todo momento. Nenhuma cultura de células consegue imitar isso. É muito comum uma droga ou técnica funcionar in vitro, mas não funcionar in vivo. Sem explicação. E quem aqui gostaria de ser operado por um médico que só treinou com bonecos de plástico na faculdade?
Ou usamos “modelos animais” (que é o termo científico correto), ou fazemos experimentação direta em seres humanos. Ou paramos de pesquisar. São essas as opções.
Mas por que estou me arriscando nesse assunto agora? Enfiando a mão nesse vespeiro bioético?
A revista Nature publicou na semana passada os resultados de uma pesquisa com quase 1 mil cientistas da área biomédica (biologia aplicada à medicina), perguntando sobre a influência que os grupos militantes de defesa dos animais tiveram sobre suas pesquisas nos últimos anos. Muitos pesquisadores sofrem ameças e são vítimas de atentados por parte de ativistas radicais, que são contra suas pesquisas. Nos casos mais graves, cientistas já foram agredidos fisicamente e tiveram suas casas e laboratórios depredados.
Mais de 90% dos entrevistados pela Nature concordaram que as pesquisas com animais são essenciais para o avanço da ciência e da medicina. Mas veja só: 33% reconheceram ter “preocupações éticas” sobre o uso de animais em suas pesquisas. Isso, a meu ver, é algo extremamente positivo. Pois mostra que os cientistas realmente levam isso a sério e se preocupam com o que estão fazendo com os animais. Não são indiferentes.
Acho que a discussão, portanto, não pode ser polarizada entre simplesmente “contra ou a favor”. Devemos, sim, buscar alternativas, regulamentar e reduzir ao máximo o uso de animais. Mas não podemos escapar do fato de que nossa sobrevivência depende, ainda, em grande parte, do sacrifício deles.
Abraços a todos.
(Uma última observação: Por favor apaguem de suas memórias aquelas imagens aterrorizantes de macacos com a cabeça aberta e outros animais sendo “torturados” em jaulas … São imagens de casos absurdos, em geral antigas, tiradas não se sabe aonde, que não representam de maneira nenhuma o que se passa no dia a dia dos laboratórios. Como eu disse, infelizmente, sempre haverá aqueles que desrespeitam as regras e cometem abusos, e devem ser severamente punidos legalmente por isso. Mas não é disso que estamos falando aqui. Na foto acima do post, por exemplo, uma pesquisadora da UFRJ aplica uma injeção num rato para testar o potencial efeito terapêutico de uma proteína sobre lesões da medula espinhal. Para isso, a medula do rato teve de ser lesionada cirurgicamente, para simular o que ocorre nos seres humanos (por isso são chamados “modelos animais”). Esse é um exemplo típico do que ocorre nos laboratórios. Não há tortura. Os animais são tratados com respeito e o sofrimento é sempre o mínimo possível.)

Herton Escobar. Estadão. 02.03.2011.

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