Bandido não é uma pessoa normal”, disse o presidente Lula, em 28 de outubro, referindo-se à violência no Rio de Janeiro. Mas será mesmo que todo bandido é anormal? Para o psiquiatra forense Talvane de Moraes, resposta é não, muito pelo contrário. “Essa é uma dicotomia falsa, que a psiquiatria repudia”, garante.
Moraes (foto), que trabalhou no manicômio penitenciário e no Instituto Médico Legal e já examinou marginais conhecidos, revela que eles não diferem em nada de qualquer pessoa, tendo relações afetivas, senso de companheirismo e códigos de ética. “O comportamento criminoso foge à regra, mas é humano”, afirma.
O psiquiatra foi um dos palestrantes convidados do 1º Seminário de Criminologia e Segurança Pública, realizado em outubro no auditório da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), no Fórum do Rio, e promovido pela Subsecretaria de Ensino e Programas de Prevenção da Secretaria de Segurança Pública, o Instituto Brasileiro de Direito e Criminologia e a Emerj. No evento, profissionais das áreas de Segurança e Justiça criticaram sem pudor os sistemas nos quais trabalham.
De acordo com Moraes, a principal característica do doente mental é a desagregação do mundo psíquico. “O crime é um ato pragmático em que o criminoso busca uma finalidade. Ele é uma pessoa fria do ponto de vista psíquico. Mas a conduta criminosa não é definidora de doença mental”, diz. Pelo contrário, acrescenta, o doente mental raramente é autor de crimes e geralmente, quando o faz, é por um acidente de percurso, como quando sofre um surto psicótico de perseguição.
Moraes explica que toda vez que vemos uma conduta desviante, temos uma tendência natural a achar que a pessoa é anormal. “Quando alguém comete um crime bárbaro, repudiamos sua presença em nosso meio, numa espécie de exorcismo. Considerar a pessoa doente é uma forma de repudiá-la e excluí-la do nosso meio social. Mas delinquência é diferente de doença mental”, enfatiza. Segundo ele, estabelecer modelos médicos para os comportamentos humanos e criminosos é difícil.
“Existe uma visão histórica de que as pessoas nascem para o bem ou para o mal. O ser humano é uma construção biográfica e não biológica. Não se nega o temperamento, as características fundamentais da pessoa, mas a singularidade é uma construção biográfica a partir do que recebemos do meio: família, escola, amigos. É o que nos leva a ser como somos. Vivemos numa dinâmica constante entre o que somos ou queremos ser e o grupo social em que estamos”, explica.
O psiquiatra ressalta que hoje a sociedade admite melhor as diferenças e considera parte da diversidade humana comportamentos antes tidos como doentios. Para ele, é um equivoco só se pensar em punir os criminosos. “Se o Estado tem o monopólio da punição, tem que dar à pessoa uma nova perspectiva para não voltar à ação criminosa no futuro, oferecendo possibilidades para mudar esse caminho”, defendeu.
Ao fim da fala de Moraes, o delegado Cláudio Ferraz, titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco), que atuava como mediador, ratificou suas palavras. “O crime é um negócio e o objetivo é sempre o lucro”, disse, acrescentando que as cadeias são uma “pós-graduação em crime”.
Política criminal: esquizofrenia e contradição
O procurador do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Carlos Canedo (foto), concentrou suas críticas na política criminal, que considera “esquizofrênica e contraditória” quase no mundo inteiro. “Ela dissocia controle de punição. Fecha daqui e abre dali”, diz.
De acordo com Canedo, apesar de desmoralizada, hoje há uma revalorização da prisão. “A prisão serve não para ressocializar, mas para excluir mesmo. O discurso da prisão volta da pior forma possível: isolar o maior tempo possível. É uma questão de profilaxia social”, define.
O procurador acrescenta que a discussão sobre a vítima está vindo de maneira equivocada, em que o agravo ao criminoso seria um desrespeito à vítima. “A dor das vítimas é uma realidade. O Estado reafirma sua soberania punindo, mas o custo disso é muito alto e as cadeias ficam superlotadas”, atesta. Para ele, a solução estaria em políticas de controle social.
O avesso do avesso do avesso
O sistema criminal e o encarceramento também foram alvo de críticas do delegado Orlando Zaccone (foto abaixo), coordenador das unidades prisionais da Polinter. Para ele, as funções do cárcere em termos da segurança - castigar, prevenir (intimidando) e reabilitar - são incongruentes entre si. “A prisão já nasceu fracassada e continua fracassando nos pontos que se propõe. Ou castiga ou socializa”, diz.
De acordo com Zaccone, as carceragens são espaços extralegalidade e não são preparadas para receber presos. Segundo ele, hoje os presídios têm mais vagas que as carceragens.
“Invertemos o sistema. Primeiro se prende e depois pergunta. No sistema prisional hoje há mais suspeitos do que condenados. O resultado cruel dessa inversão é que as carceragens ficam cheias de criminosos pés-de-chinelo, já que os ‘cabeças’ são transferidos no mesmo dia. O lugar que é para se sofrer mais é destinado aos mais vulneráveis”, denuncia.
Segundo o delegado, os crimes que mais encarceram hoje são ligados ao tráfico de drogas, sendo que muitas mulheres pobres, não violentas, são pegas e presas levando drogas a companheiros em presídios. “São traficantes do amor”, diz. Em seguida, vêm roubo, porte de arma, furto, receptação e violência doméstica. Para Zaccone – autor de “Acionistas do nada – Quem são os traficantes de drogas” – estas pessoas ficam presas porque não geram reação social.
“Constroem-se inimigos do sistema. Sonegação fiscal é crime? Sim. Mas quantos comerciantes são presos? Eles não são alvo. Traficante de classe média tem tratamento de usuário, é considerado um ‘comerciante’. Quanto tempo passa na prisão uma mula e um traficante internacional? Isso dá uma boa pesquisa. O universo penitenciário é o avesso do avesso do avesso”, atesta.
Para Zaccone, o que causa o problema é a vinculação do sistema prisional com a segurança pública. Ele define o crime como “uma invenção, uma construção política, o resultado de um processo seletivo”. A seu ver, os números revelam processos de criminalização, mas não a realidade dos crimes. “O código penal tem mais de 300 crimes. O processo de inflação penal facilita esse processo seletivo”, observa.
De acordo com o delegado, altos índices de autos de resistência são outro aspecto desse processo. “Uma polícia que não pensa atrofia. Cabe construir um discurso para mudar a acepção atual de que ou é guerra ou omissão ou corrupção”, afirma. A proposta do delegado é conferir um estatuto político da dignidade aos presos. “Atribuir dignidade ao preso reafirma o Estado Democrático de Direito”, opina.
Repressão tem efeito oposto
A ação da polícia foi o tema abordado pelo coronel Jorge da Silva (foto), da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Para o coronel, a premissa de que se tem que usar a força para acabar com a violência está errada, porque não funciona.
"No Rio não falta polícia, nem civil nem militar. Dizem que é preciso fazer mais, mas mais do mesmo? Quanto mais se emprega a polícia sem controle, mais mortes, inclusive de policiais. Se o número de policiais e bandidos mortos é sinal de eficiência, estamos perdidos, não estamos usando o cérebro, só os músculos", afirma.
De acordo com Silva, o próprio sistema pode ser um fator de aumento da violência, se for discriminatório e corrupto. Ele defende que a polícia mude seus focos, com a reformulação das políticas de segurança pública.
"A idéia de pacificar massacrando é um problema. Queremos acabar com o tráfico ou com os traficantes das favelas? Reprimir não vai resolver, porque é uma máquina, sempre vêm outros. Esse modo de agir é um pretexto para manter essas comunidades sob controle. Quanto mais se combate o tráfico mais o crime de rua aumenta", argumenta.
Comunidade Segura.