Obrigar a mãe a carregar no ventre, pelo longo período da gestação, filhos que não irá ter, imaginando, a cada instante, que nascerão mal formados e morrerão logo em seguida, é constrangê-la a sofrimento inútil, cruel, incompatível com o conceito de vida digna.
Com esse fundamento o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a interrupção da gravidez de uma mulher que estava no quinto mês de gestação de gêmeos xifópagos, unidos pelo tórax e abdômen. Os fetos compartilhavam o mesmo coração, fígado e cordão umbilical e, de acordo com todas as perícias realizadas, não havia nenhuma chance de correção cirúrgica ou qualquer possibilidade de vida fora do útero.
A decisão é da 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e a solução encontrada, por votação unânime, foi um parto jurídico carregado de conflitos e angústia. Este é o segundo caso de autorização judicial de aborto por anomalia de feto ocorrido este ano.
No julgamento prevaleceu a jurisprudência que se consolida naquela corte. O Tribunal paulista vem entendendo que, na impossibilidade de sobrevida do feto, permitir o aborto, com o propósito de abreviar o sofrimento da mãe, em respeito ao seu luto, sua saúde e dignidade é medida que se impõe em respeito à dignidade humana.
Em dezembro do ano passado, a mulher descobriu que estava grávida pela segunda vez. Ela já é mãe de uma menina de quatro anos. No mês seguinte, depois do primeiro exame de ultrassom, veio a primeira má notícia de que a gestação era de gêmeos ligados pelo abdômen. No exame seguinte apurou-se os gêmeos era imperfeitos unidos pelo tórax e barriga, com o mesmo coração e fígado. Uma ecocardiografia fetal concluiu que seria impossível a separação da massa cardíaca por meio de cirurgia.
A angústia e o abalo emocional tomaram conta da mulher e do marido que estão casados há nove anos. Perícia feita pelo Instituto Médico Legal, por solicitação do Ministério Público paulista, concluiu que o quadro de anomalia dos fetos impedia manter a vida de um só deles fora do útero. Os peritos sustentaram que a interrupção da gravidez implicaria menor risco à gestante.
O Código Penal permite o aborto como medida de exceção em duas situações: quando não há outro meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez é resultado de estupro. Em caso de estupro caso, a permissão judicial é conhecida como aborto humanitário e seu fundamento é o da preservação dos sentimentos da gestante que, além da agressão sofrida, ainda teria que suportar a gravidez. A outra figura é chamada de aborto terapêutico e é admitido quando não há outra maneira de salvar a vida da mãe. Nesse caso a solução dirime o conflito entre o direito à vida (do feto) e da gestantes.
O caso em julgamento é conhecido pela doutrina e jurisprudência como aborto eugênico (quando o feto é portador de anomalia grave e sem cura), figura jurídica que não encontra previsão legal. “Na presente hipótese, a despeito da gestante, em tese, não correr risco maior do que outra mulher com gravidez múltipla, devemos considerar a peculiaridade do caso e as conseqüências que o prosseguimento dessa gestação, levada a termo por parto, pode causar”, ponderou o relator do recurso, desembargador Marco Antonio Marques da Silva.
Para a turma julgadora, diante dos inúmeros laudos, pareceres e perícias do processo não haveria motivos para se falar em sacrifício da vida dos gêmeos. O relator entendeu que as provas dos autos apontavam no sentido de que os fetos só se mantinham vivos por obra do organismo da mãe que os sustentavam.
“Além disso, considerando a sobrevivência do parto, [os fetos] não ficariam vivos mais do que poucos instantes, afastando a incidência da norma penal, que busca proteger a vida humana e não sua falsa existência”, completou o relator.
O desembargador Marco Antonio reconheceu que a decisão não era fácil, pois a questão trazida à turma julgadora envolvia o confronto de vários direitos fundamentais, como o direito à saúde, à liberdade, à vida, à autonomia da vontade, à legalidade e à dignidade humana. Ele defendeu como solução buscar o equilíbrio entre direito e realidade, de maneira tal que um não seja absoluto a ponto de aniquilar a outra.
“Se o aborto humanitário [quando a mãe é vítima de estupro] tem como fundamento a preocupação com os sentimentos da mãe, porque não admitir esse cuidado no caso de feto com anomalia sem possibilidade de vida extrauterina, mantendo a gestante subjugada a tamanho dissabor?”, questionou o relator.
Ao fiar a solução para o conflito, o desembargador Marco Antonio defendeu que o direito à vida é muito mais amplo do que assegurar apenas “o estar vivo”. Segundo ele, essa regra compreende o direito à “vida digna”. “Entendemos, pois, que o direito às vidas dos fetos, exíguas e inviáveis, não podem se opor ou prevalecer sobre a saúde psíquica da gestante e de seus familiares”, concluiu o desembargador.
A equação
O aborto eugênico, por não ter previsão legal, ainda encontra resistência entre juízes e desembargadores. A doutrina e a jurisprudência oscilam em aceitar ou não a interrupção da gravidez nesses casos.
Parte da jurisprudência entende que esse tipo de aborto tem por fundamento o interesse social na qualidade de vida e é independente de todo ser humano. Segundo essa tese, não importa o interesse em garantir a existência da vida em quaisquer circunstâncias. Ainda que sem expressa previsão legal, a interrupção da gravidez por má formação congênita do feto tem sido admitida pelo Judiciário paulista por meio de Mandado de Segurança.
Na primeira instância paulista, o pioneiro nesse entendimento foi o então juiz Geraldo Pinheiro Franco, hoje desembargador da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. “Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, sentenciou Pinheiro Franco, em 1993, quando atuava como juiz do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo).
O juiz Francisco Galvão Bruno, hoje desembargador da 9ª Câmara Criminal, seguiu a mesma trilha autorizando a interrupção de gravidez num caso de Síndrome de Edwards. A mesma posição foi tomada pela juíza Maria Cristina Cotrofe, quando titular da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Capital.
“Não há nenhuma possibilidade de tratamento intra ou extra-uterino nos casos de trissomia do cromossomo 18 ou Síndrome de Edwards”, afirmou Galvão Bruno, quando era juiz em primeira instância. “E a sobrevida, se houver, além de vegetativa não ultrapassará semanas”, completou.
O TJ paulista também tem precedente como a decisão capitaneada pelo desembargador Ribeiro dos Santos que autorizou o aborto de um feto com Síndorme de Edwards, ou a que foi determinada pelo desembargador David Haddad. Este mandou o Hospital das Clínicas da USP fazer o aborto de um feto com falta de cérebro e olhos.
O desafio no caso de gravidez de fetos com má formação já bateu às portas do Supremo, que deve julgar ação sobre aborto de fetos anencéfalos. Em junho de 2004, ao conceder liminar na ADPF 54, levantada pela confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), o ministro Marco Aurélio argumentou que a gestante convive dia e noite com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo.
“Se assim é, ninguém ousa contestar, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade”, disse o ministro Marco Aurélio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário