Recentemente o STF, em seu pleno, começou o julgamento de dois habeas corpus(1) que têm por objeto a discussão sobre “se inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado podem ser considerados como elementos caracterizadores de maus antecedentes”(2). Nesse julgamento, o min. Ricardo Lewandowski, relator do caso, teria entendido que o magistrado, “ao fixar a pena-base dos pacientes, observará fundamentadamente todas as circunstâncias judiciais constantes do art. 59 do CP, o que justificaria a fixação do quantum da pena acima do mínimo legal. No ponto, ressaltou que referido juiz levara em conta a extensa ficha criminal dos pacientes, a sua acentuada culpabilidade, caracterizada pela premeditação das condutas, as circunstâncias e os motivos reprováveis da ação, em especial a busca do lucro fácil como modo de vida, as conseqüências graves da conduta e a falta de ressarcimento dos danos causados à vítima. Aduziu que a avaliação dos antecedentes do réu, na fixação da pena, sujeita ao prudente arbítrio do juiz, tem apoio no art. 5º, XLVI, da CF, que determina a individualização da pena. Além disso, asseverou que o sopesamento dos antecedentes do réu é diverso do reconhecimento da reincidência, prevista no art. 63 do CP, a qual gera efeitos penais diversos, como no âmbito da suspensão condicional da pena ou de fixação do regime prisional”(3). Após isso, o julgamento foi adiado em razão do pedido de vista feito pelo min. Cezar Peluso.
No entanto, em que pesem tais argumentos, data maxima venia, o entendimento abraçado pelo ilustre magistrado, considerando legítima a majoração da pena por essa razão(4), colide com direitos constitucionais fundamentais e poderá, outrossim, causar efeitos práticos graves.
Explica-se, por primeiro, consoante expressa disposição do artigo 5º, LVII, CF, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Sendo assim, como decorrência do próprio dispositivo, nenhuma pessoa poderá, de qualquer maneira, ser penalmente prejudicada por processos, inquéritos ou quaisquer outros procedimentos penais, antes que haja sentença penal condenatória irrecorrível em relação a estes, porque, até então, é inocente.
Neste ponto, cabe ressaltar, o aludido dispositivo contém princípio de grande densidade normativa, não havendo espaço em seu texto para qualquer interpretação em sentido contrário ao acima exposto.
Salienta-se, porque oportuno, que a única ressalva legítima a esta premissa são as prisões cautelares, que, em tese, implicam a supressão breve, extraordinária e precária da liberdade do acusado, quando há indícios de autoria e prova de materialidade do delito (em todos os casos), além da presença de outras circunstâncias, como, por exemplo, aquelas antevistas nos art. 312 do CPP (na prisão preventiva) ou elencadas no art. 1º da Lei 7.960/89 (na prisão temporária). Todavia, de qualquer forma, estes encarceramentos nunca poderão, no caso concreto, ter prazo de duração desarrazoado, configurando, caso contrário, uma antecipação da pena, em razão no aludido princípio, pois passarão, a partir daí, a ser ilegais(5) e, por consequência, terão que ser relaxadas incontinenti (art. 5º, LXV, CF).
Por isso, não é razoável entender-se que, antes do trânsito em julgado, a prisão do acusado por aquele mesmo fato tenha que preencher uma série de requisitos e ter duração exígua e, por outro lado, admitir-se possível que meros “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado” sejam capazes de influenciar a sanção imposta ao réu pela prática de outra conduta, cristalizando, ainda, tal situação no título executivo judicial, que ficará sob o manto da coisa julgada.
Lembre-se, ademais, que, segundo o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal e, em última análise, mesmo que por vias reflexas, nesta hipótese, estar-se-ia impondo ao agente uma sanção – que consiste no acréscimo de pena aplicada na fase das circunstâncias judiciais –, apenas por ostentar “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado”, o que colide com este direito fundamental.
Afinal, agrava-se a sanção de um indivíduo, sem que tenha havido sequer uma acusação formal, no caso dos “inquéritos policiais”, ou sem se dar oportunidade ao amplo exercício do contraditório e do direito à defesa dentro dos respectivos processos. Pensando-se em exemplos concretos, é bem possível que “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado”, em um primeiro momento, sirvam para majorar a pena do réu, mas, depois, quando todas as garantias constitucionais tenham sido respeitadas em seu processamento, principalmente as acima citadas, chegue-se à conclusão de que eram todos sem fundamento, dando causa, assim, a decisões completamente contraditórias e desarrazoadas.
Destarte, pelo que foi dito, é inquestionável que meros “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado” não podem ser levados em conta na dosimetria pelo julgador.
Mas, além disso, tal interpretação pode ainda causar graves efeitos. Isto porque, como se sabe, o Direito Penal – principalmente nos países que adotam uma política de Lei e Ordem, como vem fazendo, na prática, o Brasil atualmente –, tem como característica marcante selecionar principalmente aquelas pessoas com menos condições de defender-se, estigmatizando-as com a sua aplicação.
Como decorrência disso, justamente estas pessoas, que normalmente são pobres, de pouca instrução e pardas, são também aquelas mais expostas a acumular, ao longo de sua vida, “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado”.
E, é bom frisar, muitas vezes estes “maus antecedentes” não terão qualquer amparo fático, sendo baseados apenas em meras suposições, devido àquelas características pessoais ostentadas, ou, ainda, nas impressões, na arbitrariedade ou nos interesses de autoridades policiais, entre inúmeras outras hipóteses.
Deste modo, com relação a estas pessoas, poderá ocorrer um círculo vicioso nefasto, certamente capaz de destruir completamente as suas vidas.
Explica-se: devido àquelas características, tendo muito mais chances de somar “inquéritos policiais e ações penais sem trânsito em julgado”, tais pessoas acabarão suportando um castigo corporal mais penoso, que as estigmatizará ainda mais; e isto as deixará expostas, com maior intensidade, a uma nova futura seleção pelo Direito Penal. Afinal, devido à sua condição social e econômica, têm menos condições de defender-se (contratando bons advogados, por exemplo) e, também, de despertar maior atenção do magistrado ao seu caso quando do julgamento (para um juiz sobrecarregado de processos é muito mais fácil condenar um favelado do que um vizinho de condomínio!).
Frise-se, é sabido que quanto maior o tempo dentro de um sistema prisional, mais marcado fica o indivíduo e mais complexa é a sua reinserção na sociedade; e o raciocínio consagrado naquele decisum tem justamente esta consequência: o aumento da duração da sanção, somente porque a pessoa já foi selecionada outrora pelo Direito Penal, mesmo sem que qualquer conclusão condenatória tenha sido até então proferida
Aliás, tal interpretação também se afasta da ideia do direito penal do fato, que preconiza a punição do agente por aquilo que ele fez, aproximando-se do seu antagônico, o direito penal do autor, que sanciona o indivíduo pelo que ele é, em razão de suas características pessoais, o que não é admissível em um Estado Democrático de Direito.
Inicialmente, cabe destacar, o princípio da individualização da pena não pode servir para fundamentar a interpretação aqui questionada, visto que o art. 5º, inciso XLVI, da CF, dispositivo que o proclama, é evidente norma constitucional de eficácia contida(6), na medida em que foi deixada à lei a individualização da pena e, ainda, determina o § 1º do mesmo artigo 5º que todas as normas definidoras de direitos e garantias constitucionais têm aplicação imediata.
Por primeiro, vale dizer, que se a própria Magna Carta admite que leis ajustem as formas de individualização da pena, logicamente, a Constituição Federal também poderá impor limites à eficácia deste preceito, porque esta é hierarquicamente superior àquelas; assim sendo, como consequência lógica dessa afirmação, é que outros direitos e garantias fundamentais, como o princípio da presunção de inocência, entre outros, não poderão ser restringidos por tal preceito. Em suma, analisando-se o caso, é plenamente legítimo o princípio da individualização da pena, mas desde que seja respeitada a máxima da presunção de não-culpabilidade na sua aplicação.
Ademais, esta premissa é aquela que melhor se amolda ao princípio de interpretação da unidade constitucional, que vê a Manga Carta “não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios”(7), bem como ao cânone da harmonização (concordância prática), o qual “impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros [direitos fundamentais], e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”(8), visto que garante a coexistência de ambos os princípios constitucionais, em aparente colisão, conferindo-lhes a maior eficácia prática possível.
Por tudo isso, resta agora apenas aguardar o desfecho do aludido julgamento, torcendo para que o entendimento dos demais ministros seja voltado a garantir a efetividade dos direitos individuais fundamentais, ao revés daquele proferido pelo nobre relator do caso, até porque é a função principal da Suprema Corte resguardar a fiel aplicação da Constituição Federal; considerando-se, então, como consequência, maus antecedentes apenas e somente os casos de sentença penal condenatória irrecorrível, que não são aptos a gerar reincidência.
NOTAS
(1) HC n.° 94.620/MS e HC n.° 94.680/SP.
(2) Supremo Tribunal Federal, Informativo de Jurisprudência n.° 538.
(3) Idem.
(4) Há entendimento, bastante relevante, de que existiria lesão ao princípio do ne bis in idem na majoração da pena com base nos maus antecedentes; a respeito, pode-se citar: SUANNES, Adauto Alonso S. A reincidência, autêntico bis in idem, Boletim IBCCRIM, n.° 14, p. 07, mar. 1994.
(5) STF, HC n.° 95.464/SP, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009.
(6) Segundo a classificação defendida por José Afonso da Silva, em Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 6ª edição, 3ª tiragem, Editora Malheiros, 2004.
(7) MENDES, Gilmar, et al. Curso de Direito Constitucional, 4ª edição, 2009, Editora Saraiva, páginas 135 e 136.
(8) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, 1993, Almerinda, página 228.
Matheus Silveira Pupo
Advogado
PUPO, Matheus Silveira. Os direitos fundamentais e os maus antecedentes. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 12-14, ago. 2009.
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