Presunção de inocência (base jurídica): todo réu é presumido inocente até que a sentença condenatória transite em julgado definitivamente (art. 8.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; CF, art. 5.º, inc. LVII).
A presunção de inocência impede a prisão provisória (ou cautelar) do processado? Não, desde que o juiz a decrete fundamentadamente. São três os fundamentos dessa prisão antes da sentença final: (a) fundamento fático (narração de fatos concretos que justifiquem a prisão); (b) fundamento jurídico (base legal para a decretação da medida) e (c) fundamento da necessidade da prisão (cabe ao juiz sopesar os prós e contras e demonstrar de modo inequívoco que a prisão é absolutamente necessária).
Presos cautelares no Brasil: 42,9%: se o réu (antes do trânsito em julgado final) é presumido inocente, sua prisão só pode ocorrer em último caso. Mas vendo as estatísticas do Infopen/2008, não é essa a sensação que ela transmite: 42,9% dos presos no Brasil ainda não foram julgados (ou não foram julgados definitivamente). O Brasil encerrou o ano de 2008 com 446.687 presos. Desses, 254.738 eram condenados definitivos; 191.949 presos eram provisórios (42,9%).
Estados campeões (da distribuição do sofrimento): há Estados em que a grande maioria dos presos é provisória: Alagoas (77,1%), Piauí (71,1%) e Maranhão (69,1%) são os campeões. São Paulo tem 35,1% dos presos sem condenação final. O número de presos provisórios no Brasil cresce a cada ano (assustadoramente). A situação está ficando insuportável. É incrível como podemos suportar tanto sofrimento humano como o que padecem os presos provisórios. Existem atrocidades, como nos diz Zaffaroni (Introdução ao livro Encarcelamiento de presuntos inocentes, de Gustavo L. Vitale, Buenos Aires: Hammurabi, 2007), que formam parte de uma suposta normalidade até que algum perturbador as denuncie. A prisão provisória é uma dessas atrocidades, maquiada, racionalizada, explicada por meio das formas mais incríveis e imagináveis, porém é uma atrocidade.
Medidas de vigilância (e interpretação restritiva): existem técnicas, na atualidade, de controle das pessoas vigiadas que poderiam, sem sombra de dúvida, evitar o encarceramento provisório. A lesão que pode decorrer (e efetivamente decorre) da prisão é incalculável. Nada pode reparar esse dano quando se descobre que a prisão era injusta, que a prisão não era necessária etc. Em virtude dos malefícios da prisão, especialmente quando cautelar, sua interpretação deveria ser a mais restritiva possível. A lei não pode presumir "iuris et de iure" situações de encarceramento obrigatório. A lei não pode proibir o duplo grau de jurisdição. A jurisprudência não pode criar situações de prisão obrigatória (nem tampouco flexibilizar os critérios que determinam a prisão ante tempus). É inconcebível qualquer tipo de presunção contra o réu em matéria de liberdade.
Carreiras criminais: há juízes que absurdamente estão transformando a prisão cautelar em prisão antecipada. Pior: mais grave que a pena final. Muitos presos acham-se recolhidos há anos (sem julgamento). Para além dos prejuízos materiais que esses atos desvairados vão gerar (virão muitas condenações contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos), deveríamos estar prestando atenção nas carreiras criminais que estamos fabricando. Muitos presos vão para a cadeia (na primeira vez) sem ter condenação definitiva. Acabam no final sendo condenados a penas não muito longas (e recebem benefícios que impedem o encarceramento definitivo). Apesar da total ausência de perspectiva de uma prisão longa, os juízes mantêm muitas pessoas presas durante o processo. Estão contribuindo decisivamente para o desenvolvimento de carreiras criminais.
Concepción Arenal e a injustiça: já em 1877 a penitenciarista espanhola Concepción Arenal escrevia: "Impor a um homem uma grave pena, como é a privação da liberdade, uma mancha em sua honra, como é a de haver estado no cárcere, e isso sem ter sido provado que é culpado e com a probabilidade de que seja inocente, é coisa que se distancia muito da justiça".
A prisão como vingança: parece não haver dúvida que a prisão cautelar, sobretudo quando abusiva, fundamenta-se claramente na vingança. O público, como nos diz Zaffaroni, não tolera que ao delito não siga a vingança ou o linchamento do sujeito "considerado prontamente culpado". A mídia, de um modo geral, apóia essa postura judicial, daí o crescimento assustador da prisão cautelar no Brasil que afeta, basicamente, os menos favorecidos.
Seletividade do sistema penal: há muitos juízes que não possuem senso crítico frente ao humor de Millôr Fernandes que escreveu: "Ser pobre não é crime, mas ajuda a chegar lá" (Millôr Fernandes, brasileiro, escritor, cronista e humorista).
Dificilmente um sujeito de classe média depara-se com um decreto de prisão cautelar. A seletividade da atuação policial e da Justiça também está presente na prisão provisória. E se por acaso o juiz de primeiro faz isso, logo em seguida vem a Segunda instância para socorrê-lo. A Justiça criminal é muito cruel com os réus pobres, a ponto de os transformar em vítimas (da máquina policial ou judicial).
Medidas alternativas: impõe-se a adoção urgente de medidas alternativas à prisão (antes do trânsito em julgado). Há projeto nesse sentido que está tramitando no Congresso Nacional desde o ano de 2001. A regra é a liberdade. A prisão é exceção. Logo, somente quando fundada na absoluta necessidade é que se justifica.
Novos padrões civilizatórios: temos que evitar que mais e mais sangue (e sofrimento inútil) jorre pelo solo brasileiro, seja em razão da violência do criminoso contra suas vítimas, seja em razão da violência emanada da máquina policial, judicial e penitenciária, que transforma o criminoso (em todo momento) também em vítima (do sistema punitivo). É uma questão de civilização.
Direito penal do inimigo: uma das situações em que essa vitimização (do réu) mais acontece reside, precisamente, na ampla flexibilização das regras do devido processo legal (que muitos juízes adotam) em relação aos acusados (sobretudo pobres). Isso significa tratar os réus pobres com menos garantias que os réus ricos. Em outras palavras, isso significa admitir (inconstitucionalmente) dois tipos de processo: um para o cidadão (com garantias) e outro para o não cidadão (sem as devidas garantias constitucionais, internacionais e legais). Estamos a falar, claro, do abominável Direito penal do inimigo.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br.
O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 03/08/2009.
A presunção de inocência impede a prisão provisória (ou cautelar) do processado? Não, desde que o juiz a decrete fundamentadamente. São três os fundamentos dessa prisão antes da sentença final: (a) fundamento fático (narração de fatos concretos que justifiquem a prisão); (b) fundamento jurídico (base legal para a decretação da medida) e (c) fundamento da necessidade da prisão (cabe ao juiz sopesar os prós e contras e demonstrar de modo inequívoco que a prisão é absolutamente necessária).
Presos cautelares no Brasil: 42,9%: se o réu (antes do trânsito em julgado final) é presumido inocente, sua prisão só pode ocorrer em último caso. Mas vendo as estatísticas do Infopen/2008, não é essa a sensação que ela transmite: 42,9% dos presos no Brasil ainda não foram julgados (ou não foram julgados definitivamente). O Brasil encerrou o ano de 2008 com 446.687 presos. Desses, 254.738 eram condenados definitivos; 191.949 presos eram provisórios (42,9%).
Estados campeões (da distribuição do sofrimento): há Estados em que a grande maioria dos presos é provisória: Alagoas (77,1%), Piauí (71,1%) e Maranhão (69,1%) são os campeões. São Paulo tem 35,1% dos presos sem condenação final. O número de presos provisórios no Brasil cresce a cada ano (assustadoramente). A situação está ficando insuportável. É incrível como podemos suportar tanto sofrimento humano como o que padecem os presos provisórios. Existem atrocidades, como nos diz Zaffaroni (Introdução ao livro Encarcelamiento de presuntos inocentes, de Gustavo L. Vitale, Buenos Aires: Hammurabi, 2007), que formam parte de uma suposta normalidade até que algum perturbador as denuncie. A prisão provisória é uma dessas atrocidades, maquiada, racionalizada, explicada por meio das formas mais incríveis e imagináveis, porém é uma atrocidade.
Medidas de vigilância (e interpretação restritiva): existem técnicas, na atualidade, de controle das pessoas vigiadas que poderiam, sem sombra de dúvida, evitar o encarceramento provisório. A lesão que pode decorrer (e efetivamente decorre) da prisão é incalculável. Nada pode reparar esse dano quando se descobre que a prisão era injusta, que a prisão não era necessária etc. Em virtude dos malefícios da prisão, especialmente quando cautelar, sua interpretação deveria ser a mais restritiva possível. A lei não pode presumir "iuris et de iure" situações de encarceramento obrigatório. A lei não pode proibir o duplo grau de jurisdição. A jurisprudência não pode criar situações de prisão obrigatória (nem tampouco flexibilizar os critérios que determinam a prisão ante tempus). É inconcebível qualquer tipo de presunção contra o réu em matéria de liberdade.
Carreiras criminais: há juízes que absurdamente estão transformando a prisão cautelar em prisão antecipada. Pior: mais grave que a pena final. Muitos presos acham-se recolhidos há anos (sem julgamento). Para além dos prejuízos materiais que esses atos desvairados vão gerar (virão muitas condenações contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos), deveríamos estar prestando atenção nas carreiras criminais que estamos fabricando. Muitos presos vão para a cadeia (na primeira vez) sem ter condenação definitiva. Acabam no final sendo condenados a penas não muito longas (e recebem benefícios que impedem o encarceramento definitivo). Apesar da total ausência de perspectiva de uma prisão longa, os juízes mantêm muitas pessoas presas durante o processo. Estão contribuindo decisivamente para o desenvolvimento de carreiras criminais.
Concepción Arenal e a injustiça: já em 1877 a penitenciarista espanhola Concepción Arenal escrevia: "Impor a um homem uma grave pena, como é a privação da liberdade, uma mancha em sua honra, como é a de haver estado no cárcere, e isso sem ter sido provado que é culpado e com a probabilidade de que seja inocente, é coisa que se distancia muito da justiça".
A prisão como vingança: parece não haver dúvida que a prisão cautelar, sobretudo quando abusiva, fundamenta-se claramente na vingança. O público, como nos diz Zaffaroni, não tolera que ao delito não siga a vingança ou o linchamento do sujeito "considerado prontamente culpado". A mídia, de um modo geral, apóia essa postura judicial, daí o crescimento assustador da prisão cautelar no Brasil que afeta, basicamente, os menos favorecidos.
Seletividade do sistema penal: há muitos juízes que não possuem senso crítico frente ao humor de Millôr Fernandes que escreveu: "Ser pobre não é crime, mas ajuda a chegar lá" (Millôr Fernandes, brasileiro, escritor, cronista e humorista).
Dificilmente um sujeito de classe média depara-se com um decreto de prisão cautelar. A seletividade da atuação policial e da Justiça também está presente na prisão provisória. E se por acaso o juiz de primeiro faz isso, logo em seguida vem a Segunda instância para socorrê-lo. A Justiça criminal é muito cruel com os réus pobres, a ponto de os transformar em vítimas (da máquina policial ou judicial).
Medidas alternativas: impõe-se a adoção urgente de medidas alternativas à prisão (antes do trânsito em julgado). Há projeto nesse sentido que está tramitando no Congresso Nacional desde o ano de 2001. A regra é a liberdade. A prisão é exceção. Logo, somente quando fundada na absoluta necessidade é que se justifica.
Novos padrões civilizatórios: temos que evitar que mais e mais sangue (e sofrimento inútil) jorre pelo solo brasileiro, seja em razão da violência do criminoso contra suas vítimas, seja em razão da violência emanada da máquina policial, judicial e penitenciária, que transforma o criminoso (em todo momento) também em vítima (do sistema punitivo). É uma questão de civilização.
Direito penal do inimigo: uma das situações em que essa vitimização (do réu) mais acontece reside, precisamente, na ampla flexibilização das regras do devido processo legal (que muitos juízes adotam) em relação aos acusados (sobretudo pobres). Isso significa tratar os réus pobres com menos garantias que os réus ricos. Em outras palavras, isso significa admitir (inconstitucionalmente) dois tipos de processo: um para o cidadão (com garantias) e outro para o não cidadão (sem as devidas garantias constitucionais, internacionais e legais). Estamos a falar, claro, do abominável Direito penal do inimigo.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br.
O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 03/08/2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário