Com a Lei 11.923/2009, houve a aguardada tipificação daquilo já comumente conhecido como “sequestro relâmpago”. Houve, assim, o acréscimo do § 3º. ao art. 158 do Código Penal, cujo tipo básico, inserto no respectivo caput, prevê o crime de extorsão, ou seja, constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa.
Não é de hoje o conflito aparente entre o crime de extorsão e de roubo. O roubo é um típico furto violento, e tem todas as características do furto mais o elemento violência. O ladrão subtrai por si mesmo, usando de violência, uma coisa de quem a tem em seu poder; o autor de extorsão faz com que este a entregue mediante violência e ameaça. Assim, na extorsão faz com que lhe seja entregue ou colocada à sua disposição. Leciona-se que a violência empregada pelo sujeito ativo no crime de roubo é física e imediata, para o fim de obter concomitantemente o proveito, ao passo que na extorsão é moral e subordina a ação/omissão a evento futuro(1).
Feitas tais ponderações, resta claro que a diferença entre ambos não é tão simples. São crimes complexos, ou seja, atingem tanto a pessoa quanto o patrimônio, sendo certo ainda que tutelam bens jurídicos idênticos, insertos no mesmo capítulo do Código Penal. Talvez a grande diferença entre os tipos penais, todavia, resida no fato de a extorsão ser um crime formal, ou seja, não exige o resultado para a sua consumação. No roubo, ao contrário, o resultado é imprescindível para sua consumação, ou seja, deve ser necessariamente verificada a produção do resultado naturalístico.
A grande inquietação foi ocasionada exatamente quando o legislador pareceu confundir os dois institutos, com o advento da Lei 9.426/96, que introduziu o inciso V ao § 2º. do artigo 157 do Código Penal, prevendo como majorante àquele tipo penal, o fato de o agente manter a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade para subtrair coisa móvel alheia mediante violência ou grave ameaça. O que pacificamente era tratado extorsão, foi considerado roubo pelo legislador, aprofundando a polêmica do tema.
Pois bem, agora o legislador introduz como modalidade qualificada do crime de extorsão a conduta do agente que mediante violência ou grave ameaça restringe a liberdade da vítima e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica. Agora, além da confusão nos tipos fundamentais, o legislador cria uma patente e perigosa semelhança nos tipos derivados. Como o próprio nome diz, tipo derivado é aquele que tem conexão com o fundamental, emana dele, e cumpre a função de agravar ou diminuir a pena. Descreve circunstâncias de um determinado crime, cujos dados essenciais acham-se contemplados no tipo fundamental(2).
Após esta breve introdução, inevitável uma melhor análise das consequências da novel legislação, que tentaremos expor adiante:
Conforme supra mencionado, com a Lei 9.426/96 o legislador criou uma causa especial de aumento de pena a ser aplicada na terceira fase, conforme o sistema trifásico adotado na legislação pátria. Desta maneira, ao juiz caberia aferir o delito de roubo (tipo básico), fixando a respectiva pena base para então, após apreciar circunstâncias agravantes e atenuantes, proceder com o aumento de pena previsto no inciso V do § 2º. do artigo 157. Aplicar-se-ia a majorante quando o roubo fosse praticado com restrição da liberdade da vítima, a qual permaneceria em poder do agente. Neste diapasão, a maior controvérsia acerca desta causa especial de aumento consistia exatamente na confusão entre o crime de roubo e o de extorsão. A partir do momento em que o agente mantém a vítima em seu poder, pressupõe-se que sua conduta não pode ser praticada por si mesmo, mas sim, que exista uma conduta da vítima no sentido de entregar-lhe a vantagem patrimonial. Iniciou-se a grande polêmica, pois ao invés de causa de aumento para o crime de extorsão, criou-se um tipo derivado para o crime de roubo. Então, no último dia 17 de abril, apesar da possibilidade de veto parcial, foi sancionada a Lei 11.923/2009, com o fito de pôr fim à polêmica, inserindo finalmente um tipo derivado ao respectivo artigo 158 do Código Penal. Desta vez, todavia, previu uma qualificadora, a ser aferida já na primeira fase da aplicação da pena. O problema reside exatamente no fato de o inciso V do § 2º. do artigo 157 continuar em vigor. Haveria então conflito aparente de normas?
Se nos socorrermos das diversas soluções propostas, ou seja, princípios da especialidade, da subsidiariedade, da consunção e da alternatividade, veremos que não. A novel legislação não é especial em relação à antiga, até porque “agravam” crimes diferentes. Não há também que se falar em subsidiariedade, sob pena do absurdo, por exemplo, de aplicar extorsão qualificada quando não se verificar o roubo com a respectiva majorante e vice-versa. Um também não é crime meio do outro e não estamos diante de um tipo misto alternativo.
Haveria então novatio legis in pejus? Cremos que não. Se esta fosse a intenção do legislador, teria expressamente revogado o texto do artigo 157, § 2º., inciso V, o que não o fez.
Existe, portanto, uma única e derradeira conclusão: os dois tipos penais coexistem. E se assim ocorre, como evitar que sejam duplamente aplicados, em anacrônico e absurdo bis in idem?
A resposta deve ser obtida na velha interpretação dada aos delitos de roubo e extorsão. Assim, exemplificando: se o agente restringe a liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica indevida, ou seja, se para obter tal vantagem através de uma conduta da vítima, for necessário a restrição da liberdade desta, estaremos diante da aplicação da nova legislação, o que, diante do princípio da irretroatividade, será aplicado aos crimes cometidos após o dia 17 de abril de 2009. E quando seria aplicado o § 2º, inciso V do artigo 157? A resposta só pode ser uma: quando estivermos diante de roubo impróprio, ou seja, quando a restrição da liberdade da vítima se der após a subtração, com o fim de assegurar a impunidade do delito ou detenção da coisa.
O tema ainda é novo e acarretará certamente muita discussão. De qualquer forma, ambos os institutos estão em vigor, cabendo ao intérprete a melhor exegese para aplicação da lei ao caso concreto.
Referências Bibliográficas
(1) PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial. Volume 2. 2.ª ed. São Paulo: RT, 2002.
(2) GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral. Volume 3. São Paulo: RT, 2004.
José Antônio Pinheiro Aranha Filho
Delegado de Polícia/SP.
Pós- graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Pós- graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu (Coimbra/IBCCRIM).Pós-graduando em criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Boletim IBCCRIM nº 201 - Agosto / 2009
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