sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Artigo: (IR)Responsabilidade penal da pessoa jurídica – uma nova perspectiva

Faz um bom tempo que o tema responsabilidade penal da pessoa jurídica vem sendo objeto de inúmeros estudos e infindáveis polêmicas. É certo também que os argumentos centrais deste debate encontram-se praticamente esgotados. No entanto, entre os fins deste contributo não se encontra o de descrever os entendimentos recorrentes e nem os sistemas legais existentes, mas, sim, o de proceder a uma provocação reflexiva a partir de uma análise que foge dos argumentos já saturados. Uma renovação na avaliação desta problemática, pode conduzir-nos a uma solução que se adeque mais à dogmática adotada no Direito brasileiro.


De início, deve-se superar o debate sobre se a pessoa jurídica é uma realidade e uma ficção e aceitar, como faz Requião, “a circunstância de possuírem” as pessoas jurídicas “uma realidade no e para o mundo jurídico”(1). Perceba-se, contudo, que esta “realidade no e para o mundo jurídico” das pessoas jurídicas não é absoluta nem no próprio campo do Direito Privado. Esta existência somente é válida enquanto a pessoa jurídica servir a fins lícitos. A doutrina da Disregard of Legal Entity, também conhecida como doutrina da penetração ou da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, foi inicialmente construída, pela jurisprudência, no direito anglo-saxão, para coibir os abusos verificados através da personalização de sociedades anônimas(2).

Esta doutrina encontrou ampla ressonância no Brasil, de forma que sua aplicação atual não se limita apenas às sociedades anônimas e nem às relações contratuais essencialmente privadas. Por exemplo, o Direito do Trabalho, de forma construtiva, a partir do artigo 2, §2o da CLT, também a acolhe, e de forma clara, inequívoca e expressa em Lei, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, o novo Código Civil, na redação do artigo 50, e a própria Lei de Crimes Ambientais em seu artigo 4o. Precisa a lição de Requião ao expor que “a personalidade jurídica não constitui em direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito”(3). Não se pode contestar que, no mundo do ser, a pessoa jurídica não passa de uma reunião de indivíduos ou de um conjunto de bens. Como ensina Caio Mário da Silva Pereira, “o espírito criador engendra então entidades coletivas, resultantes de um agregado de pessoas ou de um acervo de bens”(4). No entanto, não será toda reunião de pessoas e bens que dará origem a uma pessoa jurídica, mas, sim, somente aquelas que atenderem a pressupostos normativos mínimos. Caio Mário da Silva Pereira elenca três: vontade humana criadora, observância das condições legais e liceidade de fins(5). De modo mais claro, não se pode fugir do fato de que a coletividade de pessoas só será convertida e valerá, produzindo efeitos jurídicos, na qualidade de pessoa coletiva (jurídica), se atender e enquanto atender aos termos da lei. Ou seja, se a pessoa jurídica atua abusiva e antijuridicamente, poderá ter sua personalidade jurídica desconsiderada, para que a responsabilidade daqueles que agiram, por meio deste instrumento, possa ser questionada de forma individualizada.

Dessa forma, é de fácil percepção que, no campo extrapenal, o abuso de direito no uso da pessoa jurídica leva à sua desconsideração e à responsabilidade das pessoas naturais que se valeram da pessoa moral para atuarem fora do amparo do Direito. Constituir ou empregar uma pessoa jurídica para a prática de crimes, isto é, fatos típicos, antijurídicos e culpáveis, nada mais é do que cometer um abuso de direito. Como já se defendeu em trabalho anterior, o instituto do abuso de direito é perfeitamente aplicável no Direito Penal, posto que o ordenamento jurídico é uno e, por conseqüência, as suas bases também(6). Se a conduta praticada representa um abuso de direito, está ela desamparada no Direito, de forma que ela se localiza no campo do não-direito, isto é, da ilicitude. Se a conduta é ilícita, não há fundamento para que o Direito de qualquer forma a reconheça enquanto produtora de efeitos válidos e lícitos.

Em termos mais claro, se, no campo extrapenal, o abuso de direito no uso da pessoa jurídica acarreta a desconsideração de sua personalidade jurídica e a responsabilidade pessoal dos indivíduos que dela se valeram ilicitamente, o mesmo há de valer no campo do Direito Penal, pois cometer crimes, por meio da pessoa jurídica, é um abuso de direito tão ou mais grave que o abuso de direito cometido na seara extrapenal. Resta claro que não há a menor necessidade de serem criadas regras ad hoc(7) para punir os responsáveis pela criminalidade econômico-empresarial, uma vez que se forem observadas as regras básicas da constituição e desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica, inexistirão as alegadas lacunas de punibilidade. Por outro lado, não se olvide que eventuais ganhos criminosos destinados à sociedade serão, com a condenação das pessoas naturais responsáveis, perdidos em favor da União, desde que não atinjam direitos de lesados ou terceiros de boa-fé, na forma do artigo 91, II, “b”, do Código Penal.

Em verdade, a incorporação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico-penal brasileiro não passa de um ato simbólico, que desconsidera a realidade fática e dogmático-jurídica, e dá origem ao tão combatido Direito Penal Simbólico. Não se pode olvidar que entidades de Direito Privado só podem almejar fins lícitos, uma vez que o Direito não confere qualquer juridicidade a entidades criminosas, tanto que agrupamentos de quatro ou mais indivíduos reunidos com o fim de cometer ilícitos penais dá ensejo à ocorrência do crime de quadrilha ou bando e não ao surgimento de uma pessoa jurídica de Direito Privado.

NOTAS

(1) REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol I. 24a ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.347.
(2) REQUIÃO, Rubens. Op. Cit. p.351.
(3) REQUIÃO, Rubens. Op. Cit. p.353.
(4) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 19a.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.186.
(5) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op.Cit. p.186.
(6) LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria Geral da Participação Criminal e Ações Neutras. Curitiba: Juruá. No Prelo.
(7) São interessantes as considerações de Feijoo Sánchez, ao expor que não deixa de ser curioso o fato de as doutrinas de Direito Civil, Direito Empresarial, Direito Tributário, dentre outras, pretenderem, por razões materiais, superar a radical diferenciação formal entre a responsabilidade da pessoa física e a responsabilidade das pessoas jurídicas, valendo-se de teorias como o levantamento do véu e o rompimento do hermetismo da pessoa jurídica, enquanto que uma parte dos penalistas busque uma trajetória contrária, que é alheia à realidade e desconsidera o substrato sobre o qual o Direito Penal tem que trabalhar. Esta obsessão e a possibilidade de resolver alguns conflitos sociais podem fazer com que se esqueça que a pessoa física é o principal responsável pelo cometimento da infração e o “centro de decisão”, por conseqüência, o centro de imputação penal. SÁNCHEZ, Bernardo José Feijoo. Sanciones para Empresas por Delitos contra el Medio Ambiente – Presupuestos Dogmáticos y Criterios de Imputación para la Intervención del Derecho Penal contra las Empresas. Madrid: Civitas Ediciones, 2002. p.88, p.89 e p.91.



Por José Danilo Tavares Lobato, Doutor em Direito pela UGF, defensor público/RJ, Professor de Direito Penal da EMERJ.


Fonte: Boletim IBCCRIM nº 205 - Dezembro / 2009

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