quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Artigo: A imprescindibilidade da perícia na arma empregada na tentativa branca

O tema das nulidades é complexo, polêmico e, bem por isso, apaixonante. Especificamente no âmbito do Processo Penal, o assunto ganha tintas ainda mais vivas, em razão dos reflexos do seu reconhecimento para os fins de eventual ocorrência de prescrição ou da possível constatação de excesso de prazo na prisão processual. Para exemplificar, pode-se citar matéria reiterada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: o desrespeito ao rito da, já revogada, Lei n. 10.409/02, no pertinente à fase defensiva preliminar(1).

Até bem recentemente, o entendimento quase unânime na doutrina era de que, tratando-se de nulidade absoluta, tinha-se como presumido o prejuízo, sendo, portanto, dispensável a sua demonstração. Nestes termos, confira-se a lição de Vicente Greco Filho:

“Se a norma violada pelo descumprimento do modelo é norma tutelar do interesse público, que quer dizer interesse da justiça, a situação é de nulidade absoluta. A nulidade absoluta pode e deve ser decretada de ofício, se houver instrumento e no momento próprio. O defeito não convalesce ou sana. Não há necessidade de prova do prejuízo, porque o prejuízo é presumido, pois é do interesse público” (Manual de Processo Penal. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 267).

De maneira não muito distinta, ensinavam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho:

“As nulidades absolutas não exigem a demonstração do prejuízo, porque nelas o mesmo é evidente. Alguns preferem afirmar que nesses casos haveria uma presunção de prejuízo estabelecida pelo legislador, mas isso não parece correto, pois as presunções levam normalmente à inversão do ônus da prova, o que não ocorre nessas situações, em que a ocorrência do dano não oferece dúvida” (As Nulidades no Processo Penal. 8ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 33).

No entanto, os três professores titulares de Processo Penal da Universidade de São Paulo alteraram tal posicionamento na última edição de seu Nulidades:

“O prejuízo que autoriza o reconhecimento da nulidade do ato processual imperfeito pode ser visto sob um duplo aspecto: de um lado, o dano para a garantia do contraditório, assegurada pela Constituição; sob outra ótica, o comprometimento da correção da sentença. (...)

A decretação da nulidade implica perda da atividade processual já realizada, transtornos ao juiz e às partes e demora na prestação jurisdicional almejada, não sendo razoável, dessa forma, que a simples possibilidade de prejuízo dê lugar à aplicação da sanção; o dano deve ser concreto e efetivamente demonstrado em cada situação. (...)

No entanto, deve-se salientar que, seja o prejuízo evidente ou não, ele deve existir para que a nulidade seja decretada. E nos casos que ficar evidenciada a inexistência de prejuízo não se cogita de nulidade, mesmo em se tratando de nulidade absoluta” (As Nulidades no Processo Penal. 10ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2007, pp. 30-31).

A par de tal novel vestimenta do conceito de nulidade absoluta, depara-se com um caso de nulidade que não figura dentre aquelas listadas no art. 564 do Código de Processo Penal, mas que, segundo ora defendido, deve ser tido como eiva irresgatável. Refere-se à imprescindibilidade do exame de eficácia da arma, utilizada na tentativa branca.

É importante lembrar, preliminarmente, os ensinamentos de Hélio Tornaghi:

“Além do exame do corpo de delito, a lei exige também o dos instrumentos do crime.

‘Art. 175. Serão sujeitos a exame os instrumentos empregados para a prática da infração, a fim de se lhes verificar a natureza e a eficiência’.

A falta desse exame, entretanto, não acarreta nulidade” (Curso de Processo Penal. 4ª ed. rev. e aum., São Paulo: 1987, v. I, p. 320).

De fato, como asseverado pelo saudoso lente, e já destacado acima, não figura o exame da arma, por exemplo, em crimes como a lesão corporal e o homicídio, no elenco legal das nulidades — pois a arma, então, não seria o corpus delicti, mas apenas o instrumento empregado (cf. art. 565, III, alínea b, do Código de Processo Penal). Não obstante, sublinhe-se, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça e a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal vêm reconhecendo a imprescindibilidade da perícia no instrumento do delito para a majoração da pena do delito de roubo circunstanciado pelo emprego de arma, nos moldes do art. 157, § 2º, I, do Código Penal(2).

Feitas estas considerações, concentra-se, agora, no objeto do presente ensaio. A tentativa branca, ou incruenta, é aquela em que o bem jurídico sequer é tisnado. Nesta ocasião, vem-se defender que em tal conatus, perpetrado com emprego de arma, é indispensável a apreensão e a perícia do instrumento tido por lesivo, para que se possa alcançar a escorreita responsabilização penal. Isto porque, uma vez apurada a eventual inaptidão da arma, abrem-se as portas para o reconhecimento de crime impossível, em razão da ineficácia absoluta do meio.

Neste passo, busca-se o magistério de José Frederico Marques:

“O meio é ineficaz quando não apto, como antecedente, a produzir determinado efeito ou evento; desta forma, empregado ou usado na prática de atos executivos de um delito, não poderá dar causa à consumação do crime” (Tratado de Direito Penal. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1965, v. II, p. 302).

E, pontua-se, precisas são as luzes lançadas por Miguel Reale Júnior, ao esclarecer que o juízo sobre a inidoneidade do meio, para os fins do art. 17 do Código Penal, é efetuado ex post:

“Primeiramente, cumpre notar que a inidoneidade não pode ser examinada ex ante, por prognose póstuma, pois se o agente conhece a insuficiência dos meios de que se utiliza tem-se, por força de conseqüência, que concluir pela inexistência da intenção de cometer o delito. Na tentativa, o agente escolhe meios idôneos e efetivamente eles o são. No crime impossível o agente escolhe meios inidôneos que pensa idôneos, mas que realmente não o são. No crime impossível, portanto, de acordo com as observações de Neppi Modona, o juízo de inidoneidade é de caráter objetivo e realizado ex post” (Instituições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: 2002, p. 306).

Assim, para a prolação de sentença condenatória — diante de imputação de tentativa incruenta — é fundamental que se afira, previamente, a eficiência da arma. O instrumento de ataque/defesa pode tanto ser arma: de fogo, branca, ou aquela denominada imprópria(3). Pode-se estender, sim, a proposição para a arma branca, pois, imagine-se que alguém é acusado por tentar lesionar alguém com o emprego de uma faca que, na verdade, não passava em um artefato de brinquedo, inócuo, portanto, a gerar risco ao valor imantado no tipo penal do art. 129 do Código Penal.

E a constatação não deve anteceder somente a sentença condenatória. Dada a redação do art. 413 do Código de Processo Penal, é manifesto que, para o advento da pronúncia, é necessário um juízo de convencimento profundo sobre a existência do crime. Serve-se novamente, neste passo, dos ensinamentos de José Frederico Marques:

“Tudo está a mostrar, portanto, que o Código de Processo Penal, para o juízo da formação da culpa, exige a certeza do crime e a probabilidade da autoria, como pressupostos suficientes da pronúncia do réu.

O crime precisa estar provado e a autoria necessita ser pelo menos provável. Donde se infere que a expressão indícios está empregada com o sentido de prova leviora funcionar ‘como sub-rogado processual da certeza: uma vez que se não tem, como fato certo, a autoria imputada ao réu, basta, para a pronúncia, a suspeita razoável do fato.

Prova da existência do crime significa certeza do crime.(...)

Provado, ensina Pasquale Saraceno, é tudo aquilo que se reconhece como verdadeiro” (A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1997, pp. 365-366).

Não se afirme, por outra banda, que seria admissível a vinda do laudo posteriormente à pronúncia, em casos dessa natureza, porquanto a questão do crime impossível poderia vir a ser tratada pelo juiz natural da causa. Ora, ao cabo do sumário de culpa, repise-se, deve o juiz se convencer da existência de crime(4). Logo, nesta primeira etapa, já devem as partes debater, extensa e exaustivamente, sobre tal tema, sendo defeso ao magistrado sonegar-lhes o direito de impugnar o trabalho técnico, por meio do quê se pode evitar indevida sujeição ao plenário do júri.

Deste modo, por mais que haja dezenas de testemunhas, em uníssona versão, a narrar uma saraivada — ensurdecedora mesmo — de tiros, disparados por certa pessoa, tal não se prestará, insuladamente, para embasar a condenação/pronúncia por tentativa branca. Serão úteis tais depoimentos tão-só para elucidação de autoria, mas não para revelar a afetação ao bem jurídico. Tal conclusão ganha mais força em hipóteses em que inexistir vistoria no local dos fatos (ou for ela inconclusiva) a indicar, verbi gratia, marcas de bala (perfurações ou vestígios dos projéteis).

Assim, a decisão que reconhecer a existência de crime sem a prévia constatação da eficiência da arma utilizada, quando de tentativa incruenta, será iníqua per se: provimento nulo, em absoluto, pois vazado sem se dispor de certeza sobre a idoneidade do meio. E o prejuízo? É ele duplo: por um ângulo, a apresentação de prestação jurisdicional carente de certeza; e, por outro, a violação à ampla defesa, em razão da impossibilidade de se questionar dado fundamental sobre a ocorrência típica.

Notas

(1) HC 88.854/SP, rel. ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 25.10.2007, DJ 19.11.2007 p. 266. HC 58.690/RS, rel. ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, julgado em 18.12.2007, DJ 17.03.2008 p. 1. HC 57.620/SP, rel. ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 28.08.2007, DJ 17.09.2007 p. 360.

(2) Superior Tribunal de Justiça: HC 59.350/SP, rel. ministro Paulo Gallotti, rel. p/acórdão ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 24.11.2006, DJ 28.05.2007 p. 402. No mesmo sentido: HC 86.601/SP, rel. ministro Hamilton Carvalhido, rel. p/acórdão ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 30/10/2007, DJE 25/08/2008. Supremo Tribunal Federal: HC 92.871/SP, rel. ministra Carmen Lucia, 1ª Turma, julgado em 1º.04.2008, Informativo do STF n. 500, 31/03/2008-04/04/2008. A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, recentemente, entendeu que, apreendida a arma, é indispensável a sua perícia: HC 101.884/SP, rel. ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 27/05/2008, DJE 23/06/2008.

(3) De acordo com o art. 3º do Decreto n. 3665/2000 (fiscalização de produtos controlados): “IX - arma: artefato que tem por objetivo causar dano, permanente ou não, a seres vivos e coisas; (...) XI - arma branca: artefato cortante ou perfurante, normalmente constituído por peça em lâmina ou oblonga; (...) XIII - arma de fogo: arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que, normalmente, está solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil.” Ensina Paulo José da Costa Júnior: “Em sentido amplo, arma é qualquer instrumento idôneo a vulnerar a integridade física, aumentando o potencial da agressão. Poderão as armas ser próprias (revólver, espingarda, metralhadora) ou impróprias (faca, canivete, pedaço de pau, paralelepípedo, foice, tesoura, navalha). As primeiras são as que têm o destino específico de ofender, ferir ou matar” (Curso de Direito Penal. 9ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 398). Lembre-se, ainda, o magistério de Heleno Cláudio Fragoso: “A expressão arma perante nossa legislação compreende todos os instrumentos normalmente destinados ao ataque ou à defesa (arma própria), bem como quaisquer outros instrumentos que, conquanto destinados a outros fins, podem ser eficientemente empregados no ataque ou na defesa (arma imprópria). São armas próprias, por exemplo, as de fogo, como revólveres, metralhadoras, pistolas, espingardas; e as armas brancas, como punhais, sabres, estiletes, estoques, espadas. Aqui também se incluem os explosivos, como bombas e granadas, morteiros etc. São armas impróprias, por exemplo, as espingardas de caça, as facas, facões, navalhas, canivetes, não se excluindo qualquer outro instrumento pesado ou utensílio que possa servir ao ataque, como bastões, barras de ferro e, inclusive, pedras” (Lições de Direito Penal, Parte Especial. Rio de Janeiro: Forense, 1989, vol. 1, pp. 23-24).

(4) Na anterior redação do art. 408 do Código de Processo Penal, estatuía-se que a pronúncia seria efetivada diante da “existência do crime”. Agora, a matéria encontra-se disciplinada no art. 413, que emprega a expressão “existência do fato”. A despeito da alteração, é evidente que somente se proferirá a decisão interlocutória mista diante do convencimento do juiz acerca da ocorrência de fato típico. Ainda mais tendo em conta o espírito da recente reforma processual penal, que tratou, no título do Processo Comum, a atipicidade como hipótese de absolvição sumária, nos moldes do novo art. 397 do Código de Processo Penal.


Mohamad Ale Hasan Mahmoud, Mestre e doutor em Direito Penal pela USP e professor de Direito Penal dos cursos de pós-graduação do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público e do Grupo Atame/DF.

MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan. A imprescindibilidade da perícia na arma empregada na tentativa branca. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 11, dez. 2008.

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