sexta-feira, 4 de abril de 2008

A questão da criminalidade não se resolve com Direito Penal






Nem bem se chegou ao quarto mês de 2008 e o sistema penal já deu mostras de sua falência suficientes para o ano inteiro. E não se faz referência, aqui, aos presídios de São Paulo ou à violência do Rio de Janeiro, a quilômetros do “Sul Maravilha”, mas a casos ocorridos no Paraná. São cadeias interditadas pela Justiça por todo o estado, crimes chocantes como o assassinato de uma professora da Universidade Federal do Paraná por um adolescente, entre outros fatos preocupantes. Diante desse quadro, surgem propostas de reformas nos Códigos Penal e de Processo Penal, de redução da maioridade penal, de privatização de presídios. Gritos desesperados de uma sociedade aterrorizada. O advogado paranaense Juarez Cirino dos Santos, uma das vozes mais ativas da Criminologia Crítica no Brasil, defende reformas mais profundas, com o fim da atual estrutura social. “Alguma esperança, se existe, está na transformação desse tipo de organização social excludente por outra mais igual”, afirmou em entrevista à Gazeta do Povo.

No início do mês passado, a sociedade curitibana chocou-se com o assassinato da professora da UFPR Maria Benigna de Oliveira, cometido por um jovem a três meses de completar 18 anos, o que o livrou de uma condenação mais grave, nos ditames do Código Penal. Não faltaram vozes pedindo a redução da maioridade penal, hoje de 18 anos. O que o senhor pensa a esse respeito?

Foi lamentável o que ocorreu com a professora, mas vivemos cercados desses fatos. Vivemos uma situação de violência generalizada, que tem suas raízes na própria violência estrutural, na estrutura social violenta, no sistema econômico-político violento, porque é fundado na desigualdade e na exclusão. Estamos produzindo milhões de marginalizados do mercado de trabalho, do processo de consumo e, conseqüentemente, da cidadania. São pessoas que vivem em condições subumanas de brutalização, de deformação, de embrutecimento e parece, portanto, que esse tipo de comportamento agressivo dessa população excluída pode ser tido como normal. Quer dizer, em condições sociais anormais, o crime é um fenômeno normal, a violência individual é um fenômeno normal. Assim, a questão da redução da maioridade penal é uma falsa questão. Pretende-se combater a questão da criminalidade com mais Direito Penal. Porque se reduzir a idade penal, vai se ampliar o Direito Penal, vai se ampliar a quantidade de pessoas que vão estar submetidas ao Direito Penal, que vão estar sujeitas à pena e à prisão. E a pena, o Direito Penal e a prisão, historicamente, são absolutamente um fracasso em termos de conter a criminalidade. Esse discurso, que é o discurso da teoria jurídica da pena, falando em prevenção especial, prevenção geral, em retribuição, não funciona. Essa é uma questão que está sendo colocada nos meios de comunicação, no próprio parlamento, nessas propostas de reforma do Código Penal, de modo inteiramente equivocado. Em princípio, porque não se entende o que seja imputabilidade penal. Esse juízo de reprovação é complexo e pressupõe a demonstração de certos requisitos mínimos, um deles é a imputabilidade. Aí estão parlamentares propondo a redução da idade penal, mas não sabem o que seja a imputabilidade. É óbvio – e esse é o único argumento que está na cabeça das pessoas – que um jovem de 16 anos sabe que matar é crime. Mas quando nós analisamos outros crimes, como os contra a administração pública, só para exemplificar, as pessoas já não têm a noção do que seja comportamento criminoso. Há uma infinidade de crimes que, para reconhecê-los como tais, seria preciso um mínimo de experiência, e um jovem de 16 anos não pode saber. Acho que nem o de 18 pode saber. Nessa dimensão de consciência, de conhecimento, que define a imputabilidade, começa a enorme dificuldade. Não se pode alterar a idade penal por causa disso. Mas tem um dado mais importante, que é a questão emocional. Porque a imputabilidade não se define só pela capacidade de compreender o caráter criminoso do fato, mas pela capacidade de determinar-se de acordo com essa compreensão. Portanto, a imputabilidade supõe essa capacidade de controle das emoções. E para controlar as emoções, nós precisamos de um mínimo de experiência de vida, de nos defrontarmos com situações em que essas emoções afloram e aí aprendermos a lidar com elas. Ou seja, um jovem de 16 anos, embora possa conhecer que determinados comportamentos são criminosos, tem uma imensa dificuldade e até uma impossibilidade de controlar essas emoções. Se não, daqui a pouco nós vamos punir criancinhas. E para quê? Nós já temos, afinal de contas, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece medidas sócio-educativas extremamente rigorosas: para determinados atos infracionais pode chegar a três anos de internação. E, para um jovem de 16 anos, ficar três anos internado é uma eternidade. Essa proposta de redução se insere na reação neurótica de tentar resolver o problema da violência individual com polícia, com Justiça, com prisão, e historicamente nós já verificamos que isso aí é um equívoco.

O ECA completa 18 anos neste ano. Quais os erros e acertos desse estatuto dos jovens?

O Estatuto foi criado segundo a inspiração mais democrática e seguindo as orientações mais modernas em matéria de legislação para a criança e para a juventude. Mas essa disciplina legal ficou na lei, porque ela não chegou a ser implementada na realidade. Primeiro, porque o Estado não dotou os poderes incumbidos de aplicar o ECA dos instrumentos administrativos e necessários para a implementação do Estatuto. Há uma série de questões que se poderia colocar, mas que a gente poderia resumir no seguinte: existem medidas sócio-educativas que não são privativas de liberdade, que seriam aquelas, na visão do Estatuto, que deveriam ser privilegiadas; e existem medidas sócio-educativas que são de semiprivação ou de privação de liberdade, o caso da internação, que seriam aplicadas só por exceção. Na prática, em face da ausência de estabelecimentos ou de mecanismos que permitissem a ampla aplicação do Estatuto, e também devido a uma compreensão deformada por parte das próprias autoridades incumbidas da aplicação do ECA, que levam para o Estauto uma visão própria do Direito Penal, acaba-se privilegiando as medidas privativas de liberdade, com conseqüências das mais terríveis para a juventude como um todo. Parece até que não só os juízes e o Ministério Público, mas o público em geral esqueceu que foi jovem um dia. Esqueceu que a infração para o jovem é um ato normal. É um fato normal da vida. E quem nega isso é porque ou perdeu a memória e não se lembra mais da sua juventude, ou é um hipócrita, porque está afirmando algo em que não acredita. Então, isso nos diz que nós devemos ter em relação à juventude uma atitude de grande compreensão, de grande carinho, e não uma atitude de repressão. Porque na medida em que optamos pela via mais grave, a internação, nós estamos construindo carreiras criminosas. O sistema de justiça criminal, o sistema de proteção dos atos infracionais, é criminogênico. Quem entra uma vez no sistema formal de controle está perdido, não tem mais nenhuma chance de reinserção social. O sistema perde as pessoas.

O Sr. fala de carreiras criminosas. Há indivíduos irrecuperáveis? O que fazer com eles?

Nós estamos tratando aqui da natureza humana. Estamos partindo do princípio de que existem pessoas que são boas, e que nascem boas, e que continuam boas, e nada as perverte. E existiriam pessoas que são más, nascem más, e nada as transforma em pessoas boas. Existem pessoas boas e más, e as más nós temos que excluir e as boas nós temos que privilegiar. Essa é uma idéia errada também. As pessoas não são boas ou más, as pessoas são feitas boas ou más. O homem não nasce com uma natureza dada. Não há os eleitos e os condenados, os que estão na felicidade e os que estão na miséria. O ser humano, na verdade, é o conjunto das relações sociais. Quando eu penso o ser humano como conjunto das relações sociais, eu estou inserindo o homem no contexto concreto da sua vida, e percebendo o nosso ser humano em uma sociedade como a nossa, que é uma sociedade desigual, que essa desigualdade é instituída constitucionalmente e reproduzida pelo Direito. Isso é importante destacar. A desigualdade não é um fenômeno natural. A desigualdade é instituída pela Constituição e reproduzida pelo conjunto do Direito, no caso do Direito Civil, do Direito do Trabalho, etc., e o que é pior: garantida pelo Direito Penal, pelo sistema da justiça criminal. Que desigualdade é essa? A desigualdade que decorre da relação capital X trabalho assalariado. Uma relação desigual cuja lógica significa concentração da riqueza e do poder num dos pólos da relação, que é o pólo do capital, e a generalização da miséria e da privação no outro pólo. Agora, nós vemos aqui nesse pólo do trabalho dezenas de milhões de pessoas que vivem com dificuldades fantásticas, vivendo com um salário, um pouco mais de um salário – e é impossível viver com R$ 400 por mês num país como o nosso –, e uma riqueza imensa do outro lado, que não é socializada. Agora, ainda assim, felizes dos que estão no processo de trabalho, que ainda estão integrados no mercado de trabalho e que têm um salário, uma moradia, apesar de viverem com uma dificuldade imensa. E os milhões que estão excluídos do processo de trabalho e não conseguem retornar, vão viver como? Eles não têm onde morar, não têm o que comer, não têm escola, não têm roupa, não têm perspectiva, não têm esperança, não têm família, não têm nem pai nem mãe. E esse pessoal? Imagine o ser humano que se forma. Então agora eu estou compreendendo o ser humano como a expressão desse conjunto de relações históricas, de razões sociais que o constitui. E aí, dentro de algum tempo, nós vamos encontrar aqui uma criança que nasceu com um potencial de desenvolvimento extraordinário transformada num animal, num sujeito inteiramente deformado, com o qual realmente é impossível conviver. Mas é culpa dele? Ele não gostaria de ter tido outra chance? Foucault tem uma passagem notável no livro Vigiar e Punir: ele coloca um juiz na frente de um réu e aí ele fica especulando e estudando as condições do réu, dizendo que se esse réu tivesse nascido nas condições daquele juiz, tivesse tido as chances que ele teve de se alimentar bem, de desenvolver o cérebro, de se escolarizar, de ter o apoio da família, ele seria um juiz e talvez estivesse julgando um réu. E se aquele juiz tivesse vivido nas condições desse réu, de marginalização, de exclusão, muito provavelmente ele estaria no lugar do réu, sendo julgado. Por quê? Porque o homem é esse conjunto das relações sociais, das relações históricas. Aí nós vamos ver que nós estamos produzindo essas pessoas, então nós somos responsáveis por elas também. Não as produzimos diretamente, porque não somos capitalistas, porque não temos uma grande empresa, porque não somo banqueiros, não somos industriais, não somos fazendeiros, mas somos responsáveis. Porque nós, nas escolas, nas faculdades, defendemos uma concepção de mundo que sustenta essa organização social. Na imprensa, defendemos um conjunto de valores que sustenta essa organização social. No parlamento, estabelecemos leis que instituem essa organização social. Ou seja, nós somos responsáveis por isso também. Como é que agora eu posso falar num sujeito irrecuperável, que eu preciso eliminar as maçãs podres, se fui eu quem as apodreceu. Essa maçã, em condições adequadas, poderia ser uma fruta muito bonita. Em uma sociedade desigual, violenta, como a nossa, não é possível você conter a violência individual com polícia. Isso se faz com políticas sociais, que não se idealizam porque isso requer uma transformação, uma mudança na correlação de forças, que está na base da organização social e das relações de poder político que estão aí presentes e que se exprimem nessa legislação que institui a desigualdade, ou que garante a desigualdade. O Direito Penal entra aqui como uma garantia, porque o Direito Penal legitima a prisão, e é porque o Estado tem o poder de prender através do processo penal que se mantém essa organização social absolutamente injusta. Se não existisse o poder de prender, o que seria dessa forma de organização da sociedade?

Por falar em prender, diversas prisões vêm sendo interditadas no Paraná. A situação é a mesma no resto do Brasil. E há quem proponha a construção de mais cadeias ou a privatização dos presídios...

Quanto mais cadeias construirmos, mais cadeias nós vamos encher. Essa que é a verdade. É que isso entra nessa concepção de política criminal em que se combate criminalidade com cadeia, punindo pessoas, privando pessoas de liberdade, utilizando o Direito Penal, enfim, para repressão. Combate-se a criminalidade com a repressão. Essa resposta é hoje quase neurótica, compulsiva, da humanidade capitalista. E no Brasil a tragédia ainda não é tão grande, em termos de encarceramento. Nos Estados Unidos, existem atualmente 2,5 milhões de pessoas literalmente atrás das grades, presas. Além dessas, existem mais cerca de 5 milhões de pessoas que são controladas indiretamente pela prisão, isto é, pelo probation, pelo parole, que correspondem lá ao nosso livramento condicional e à suspensão condicional da pena, mais ou menos isso. Então eles têm 7,5 milhões de pessoas. Nós estamos em torno de 400 mil, mas temos uma perspectiva de desenvolvimento muito grande: o futuro que nos aguarda é esse futuro norte-americano, que precisa construir uma nova prisão para mil homens a cada seis dias. A cada seis dias eles precisam de uma nova prisão para mil homens! Hoje eles já constroem a prisão sob a forma de fábrica, a forma ideal do capital, ou a fábrica sob a forma de prisão. É você ter ali o trabalhador aprisionado, que vive naquele espaço confinado e a única coisa que ele faz é utilizar sua energia produtiva para a produção de mercadorias. E hoje, por exemplo, algumas dessas empresas que estão investindo na indústria da prisão e do controle social nos Estados Unidos são as que mais crescem na bolsa norte-americana. E pensam que descobriram uma grande solução. É uma das sociedades mais violentas do mundo, não só internamente como externamente. Eles são o parâmetro, o padrão de violência.

No Brasil, nós temos a mesma coisa, só que em ponto menor. E ainda acreditamos na pena como resposta para a questão criminal. As nossas prisões estão, evidentemente, superlotadas. Claro que seria preferível termos prisões com dois, três presos por cela do que uma prisão com 15, 20 presos por cela. As condições são absolutamente indignas, mas isso não quer dizer que se as condições fossem dignas a prisão funcionaria. Ela não funciona. Nem nos países centrais, onde as prisões são menos indignas. Nem assim. A prisão não funciona. E aqui não funciona e não vai funcionar nunca. Agora, devemos voltar as costas às prisões por causa disso, ignorar o que se passa lá dentro? Isso não é possível. Existe uma humanidade inteira: no Brasil, são mais de 400 mil presos. Os Estados Unidos têm mais do que a população de Curitiba dentro de cadeias. E sem resolver o problema criminal. E aí eu me pergunto: o que vamos fazer? Se eu estou convencido de que a resposta penal é uma resposta absolutamente inadequada para o combate à criminalidade, vou esquecer a questão das prisões? Não! É preciso mostrar isso ao público, mostrar que o sistema não funciona. Na verdade, não se trata de ressocializar através da prisão, mas nós temos que tratar de recuperar essas pessoas que estão lá apesar da prisão. É outra coisa. Não é através da prisão, porque com a prisão não se recupera nada, mas é apesar dela recuperar para a vida. São desprovidos de dinheiro, são ex-assalariados ou pessoas que nunca entraram no mercado de trabalho que estão lá. É preciso recuperá-los para a luta, para a transformação, para que eles compreendam qual é a origem da sua desgraça e que eles não podem resolver os seus problemas sozinhos, mas que se eles agirem coletivamente, eles podem transformar a sociedade, e reduzir o sofrimento da humanidade como um todo. Um trabalho de conscientização política, de organização dessa gente. Isso é possível, na medida em que partidos políticos despertassem para isso, em que sindicatos, organizações para a vida fora da prisão sentissem que poderiam desempenhar um papel nisso aí. Na verdade, não existe melhor cárcere. A proposta não é mais cárcere, mas mais menos cárcere. Vamos também contribuir para reduzir o drama terrível dos que estão lá, não porque queiram estar lá, mas porque na vida não tiveram alternativas diferentes de sobrevivência, foram captados na rede de controle e foram condenados. Como se lá estivessem todos os que praticaram crimes. A sociedade está cheia de pessoas que praticaram crimes. Ocorre que temos uma criminalidade que é reprimida, que é essa criminalidade que se produz por inquéritos, processos e cadeia, que é uma criminalidade convencional. E temos uma criminalidade das elites, que é chamada criminalidade econômica, contra o sistema financeiro, crimes contra a ordem tributária, etc., que faz parte daquele Direito Penal simbólico, que existe só para efeito retórico, de informar o discurso, porque não tem aplicação prática. E o legislador sabe que ele não funciona. E os juízes e os aplicadores do Direito Penal convencional são até enganados por isso. Dizem: “não, mas o Direito Penal é igual para todos”. Quer dizer, isso reduz aquela má consciência. É assim que funciona a lógica do sistema. Agora o discurso é outro. Quer dizer, o discurso é sempre um discurso encobridor, é um discurso que está nos mostrando uma realidade que não existe ou que está tentando nos convencer de uma coisa que é uma quimera. É um discurso que está nos meios de comunicação, que está nos livros de Direito, nas escolas, e nas faculdades de Direito, enfim, no discurso jurídico e nos tribunais. Essa é a tragédia.

E o que dizer da privatização das prisões?

Eu vou te dizer: essa questão da privatização das prisões é outro grande equívoco. Nós tivemos um período de privatização de prisões que vem do século 19 até o começo do século 20. E aí havia uma grande euforia em ter prisões privadas, especialmente nos Estados Unidos, que era então uma nação de grande progresso. E a experiência americana mostrou uma série de questões que até então não se sabia. Primeiro, que no âmbito do mercado de trabalho, a indústria que funcionava na prisão produzia uma mercadoria, por causa dos baixos salários, que sempre são inferiores, a preços mais competitivos que um concorrente fora da prisão. E aí a mercadoria da prisão quebrava a indústria fora da prisão. E começou a haver oposição dos sindicatos, porque os seus associados estavam perdendo o emprego. E veio a pressão política e a questão da privatização das prisões deixou de parecer aquela solução para a questão, inclusive com a verificação de que no trabalho da prisão ocorria uma super-exploração da força de trabalho, até com destruição da força de trabalho. Então isso produziu alguns escândalos e, no começo do século 20, aboliu-se completamente o sistema de prisões privadas, que retornaram na época do Reagan. Antes, veio o New Deal, Roosevelt, a questão da socialização, a política do bem estar social, a preocupação com seguridade social, de proteção, que não resolvem o problema da pobreza, mas atenuam um pouco. Mas na época Reagan acabou-se com o Estado de bem estar social, que foi substituído pelo Estado Penal, o estado da repressão e aderiu-se a uma política de criminalização da pobreza e de prisionalização da pobreza. Quer dizer, os Estados Unidos conseguiram reduzir os níveis de desemprego colocando os desempregados na prisão. Aquela política da tolerância zero, aquilo tudo vem na época do Reagan e aí começa uma nova fase de prisões, de prisões-empresas, de fábricas como prisões e que era diferente. Anteriormente, o Estado tinha seus condenados e aí chegava a empresa privada e dizia: “olha, nós queremos tantos aí para trabalhar”. E até ocorriam certas coisas esquisitas, porque falava-se que para recuperar era preciso que ele ficasse muito tempo trabalhando e então era importante que os juízes dessem penas longas, influenciando até o poder judiciário, no sentido de aumentar as penas para garantir uma exploração mais longa do condenado. Enfim, abandonou-se isso e, no período Reagan, a coisa veio com outro modelo: os empresários começaram a construir prisões que eram fábricas e chegaram para o governo dizendo “olha, nós temos aqui uma prisão que está prontinha, com todos os médicos, os psicólogos, os sociólogos, as assistentes sociais e os policiais e só estamos esperando os presos. E o senhor está com um problema de superlotação”. Mas que grande solução. E aí começou a indústria da prisão. Agora, eles constroem a prisão, controlam a segurança, a disciplina, e administram a pena. O que vai ser o futuro? Vamos criar um arquipélago carcerário? Em que existem apenas alguns felizardos e o resto da sociedade está enclausurada para trabalhar? É esse o tipo de sociedade que nós queremos? É esse o tipo de organização social que queremos para os nossos filhos? Isso não é possível. Eu até defendo que o preso tem que trabalhar, porque trabalhando ele cumpre sua pena melhor, mas o único patrão que ele pode ter é o Estado. Por quê? Porque o Estado é controlado. É controlado pelo Ministério Público, é controlado pelo Parlamento, é controlado pelo povo, tem instituições específicas de controle. Aqui no Paraná, nós vivemos umas experiências assim, começaram em Guarapuava, que foi uma das primeiras prisões privadas do país. Felizmente, isso foi abolido.

E o que o Sr. pensa de monitoramento eletrônico dos presos, outra moda norte-americana que chegou aqui?

Isso não serve para nada. Só serve para expandir a noção de que com repressão e controle puro e simples se combate a criminalidade, quando esta é uma questão só de redução das desigualdades sociais e de uma redistribuição da riqueza, das oportunidades de vida, de democratização da sociedade. A grande resposta para a questão criminal é a democracia, mas democracia real, não no sentido formal. Claro, a democracia formal é um caminho, nós saímos de uma ditadura, quando não havia democracia formal, nós saímos de um período em que você não tinha liberdades democráticas. Eu vivi esse horror. Agora, o que precisamos é uma democracia real no sentido de permitir que o mais humilde cidadão tenha onde morar, tenha trabalho, tenha onde estudar, tenha garantia de saúde, tenha uma perspectiva e um futuro. Aí sim. Por que nas sociedades centrais, nos países centrais, a violência social é muito menor? Porque eles resolvem os seus problemas sociais exportando-os para a periferia. Nós, da periferia, terceiro mundo, é que garantimos essa relativa estabilidade dos países centrais. Não que eles tenham eliminado a violência. O problema na Alemanha, por exemplo, é seriíssimo. Eu estou traduzindo um livro de criminologia do Albrecht, um dos maiores criminólogos da atualidade, que mostra o que é o drama nas prisões alemãs, da criminalidade na Alemanha.

As penas alternativas são uma solução?

Qualquer coisa que não seja pena privativa de liberdade é boa. É óbvio que penas alternativas, na medida em que não representam privação de liberdade, não destroem uma vida e nem uma família, mas permitem alternativa de sobrevivência, são sempre preferíveis a uma pena privativa de liberdade. Agora, não resolve o problema da criminalidade. E não é por aí que nós vamos resolver o problema da criminalidade. É preciso entender que o problema da criminalidade é um problema de democracia, democracia real. Não se resolve criminalidade com polícia, com Justiça, com prisão.

O Sr. é a favor ou contra a revista dos advogados nas entradas dos presídios?

Eu acho que nós temos que adotar medidas que preservem a dignidade do ser humano, sobretudo a dignidade do profissional. A OAB é uma instituição de muita seriedade e os advogados, em sua imensa maioria, são pessoas absolutamente preocupadas com os problemas sociais e com a questão da justiça. E não é porque, de repente, tem um ou outro ruim que agora eu vou submeter o conjunto da categoria a esse tipo de vexame. Eu sou absolutamente contra esse tipo de revista. Nós temos que apostar na democracia, na preservação dos direitos humanos, da dignidade humana, e aceitar os pequenos contratempos que isso pode criar, mas isso não justifica adotarmos medidas autoritárias e humilhantes como essa.

Tem se falado muito em mudanças na legislação penal. O que o senhor pensa dos nossos códigos?

Em primeiro lugar, o Código Penal, como os outros códigos, corresponde a um determinado tipo de organização social. A organização social na qual nós estamos vivendo é a organização social capitalista. E, desse ponto de vista, o Código corresponde inteiramente às necessidades de uma sociedade capitalista: isto é, uma sociedade de proteção do capital contra o trabalho. E não se pode dizer que o nosso código seja antigo, porque data de 1940. A parte especial, que define crimes e penas, vem sendo constantemente modificada, novos crimes vêm sendo acrescentados, além da legislação complementar – como as leis que estabelecem crimes contra o meio ambiente e a ordem tributária, por exemplo. Inclusive, isso é um problema, porque deveria estar tudo no Código.

O que mudar no Direito Penal, então, para que a situação melhore?

A mudança não é na direção em que aparece em reivindicação na imprensa, por exemplo, ou mesmo nas faculdades. A mudança é na direção daquilo que a criminologia crítica, que é na verdade a única criminologia que existe, porque a criminologia ideológica é uma bobagem, aquilo que a criminologia crítica propõe: de reduzir o Direito Penal à proteção de bens jurídicos individuais, por exemplo a vida, a liberdade, a integridade, a saúde corporal, a sexualidade, e abandonar esses crimes contra a fé pública, crimes contra o meio ambiente, tirar isso. O Direito Penal não tem nada que fazer aqui. E cria-se uma falsa idéia de solução, porque quando o poder não sabe o que fazer, ele criminaliza. “Ah! Resolvemos, criminalizamos”, mas aí você enterrou o problema! Quer dizer, quando o problema requer medidas administrativas e ação de um outro instrumental institucional à disposição do Estado, ele fica simplesmente com a pena. E a criminologia crítica está dizendo que nós temos que reduzir. A grande proposta é o direito penal mínimo. O Direito Penal tem ainda uma função social a cumprir, evidentemente, na proteção da vida, na proteção da integridade corporal, na proteção da sexualidade. Mas aí nós estamos reduzindo o Direito Penal àquela área mínima de alguns bens jurídicos que efetivamente necessitam de proteção penal. E aí nós vamos deixar de ter o Direito Penal da forma como é hoje: nós penalizamos tudo! O povo apóia porque o povo que não percebe a origem do seu sofrimento, especialmente esse povo trabalhador, que pega o ônibus às cinco da manhã para chegar as oito na fábrica, chega tarde em casa e ainda tem que comer mal, esse povo é profundamente intolerante em relação a esses marginalizados que adotam meios ilegítimos de sobrevivência, mas aí vem a questão: e quem não tem meios legítimos, como é que vai sobreviver senão adotando meios ilegítimos? E aí os caras vão para o mercado da droga. Por quê? Porque não tem lugar no mercado formal.

Por falar em drogas, o senhor é a favor da legalização?

Eu sou absolutamente a favor da legalização, isto é, da descriminalização, como estão fazendo os países centrais. E nós aqui no Brasil, quando tentamos descriminalizar a questão do uso da droga, da posse de droga para uso próprio, houve uma reação norte-americana imediata de ameaça de retaliação, porque eles não permitem. Não se percebe que a droga hoje é um dos grandes mecanismos do poder norte-americano de controle do planeta, através da política das drogas, que eles impõem a todas as políticas criminais de todos os estados. E aqui no Brasil nós não podemos descriminalizar. Criamos um problema insolúvel porque temos uma questão idiota que fala de drogas lícitas e drogas ilícitas. Nós temos o álcool e temos o fumo, que são drogas lícitas porque pertencem às grandes empresas produtoras, que não têm o controle das plantações de maconha, de coca, etc. Se tivessem, eles legalizavam. Vamos acabar com esse problema. E não adianta, mais cedo ou mais tarde, a humanidade vai ter que conviver com as drogas ilícitas, encontrar uma forma de conviver com as drogas ilícitas, como teve que encontrar com o álcool – não adiantou a Lei Seca norte-americana. E aí despenalizaram a questão do álcool, mas já criminalizaram das outras drogas que não são comercializadas pelas grandes empresas. E criaram um problema insolúvel para países como o Brasil, em que quase a metade da população das prisões está por fatos delituosos relacionados à questão da droga. A experiência da Holanda, que descriminalizou a droga, mostrou o seguinte: que após a legalização, o consumo não aumentou nada. E com isso o que eles ganharam? Eliminaram o problema criminal da droga. É como se criminalizássemos todos os alcoólatras aqui e agora. Os alcoólatras vão continuar bebendo. A grande questão da droga é a seguinte: pesquisas mostram que a criminalização da droga interessa, sobretudo, a quem produz a droga, a quem comercializa a droga, e a quem reprime a droga, isso é, às polícias que reprimem a droga. Porque a criminalização da droga significa, imediatamente, o crescimento no mercado no valor do produto na razão de um para mil. Ou seja, a criminalização cria um grande negócio. E se você descriminaliza, o preço vem para baixo e desaparece esse grande negócio.

A criminologia crítica sugere a abolição do sistema penal. Isso não é utópico?

Em princípio é preciso que se diga que eu sou um abolicionista. E todo o criminólogo crítico é abolicionista. Agora, eu não acredito e acho que é absolutamente impossível a abolição do sistema penal o capitalismo. Por quê? Porque o capitalismo depende do sistema penal para sobreviver. O sistema penal é a proteção armada do capital. O capitalismo não pode sobreviver sem o sistema penal. Então a abolição do sistema penal passa pela abolição do sistema capitalista. Isto é, pela superação desse tipo de organização social na direção de uma outra que não precise criminalizar para sobreviver. Isto é uma questão importante. Então, qual é a minha proposta para o capitalismo? Para a questão do sistema de justiça criminal e do Direito Penal é o que eu já falei do Direito Penal mínimo, reduzir o Direito Penal a um mínimo indispensável, o que vai ter reflexos imediatos em todo o sistema carcerário, porque tem muita gente aí presa por nada, até mesmo um grande número de pessoas que foram presas porque não tiveram defesa. Então essa questão da redução do Direito Penal a um Direito Penal mínimo é a primeira proposta. A segunda é trabalhar no sentido da transformação da sociedade, porque também não adianta você reduzir o Direito Penal ao mínimo e não trabalhar na direção de uma transformação estrutural da sociedade, no sentido de instituir maiores níveis de democracia, o que vai refletir também nos índices de criminalidade, portanto na necessidade de prisões. A questão do crime não se resolve mesmo com o Direito Penal e nem com prisão, nem com polícia, mas se resolve com a democratização das relações sociais.

Existe crime organizado?

Ninguém sabe o que seja crime organizado. Em primeiro lugar, ninguém nega a existência de quadrilhas. Quadrilhas existem em todos os países capitalistas, em todos os países existem quadrilhas. São reuniões de pessoas que praticam crimes. Agora, crime organizado absolutamente ninguém sabe o que seja. Essa que é a verdade. Já se realizaram dezenas, centenas de congressos internacionais sobre o crime organizado. Não se conseguiu uma definição de crime organizado. Aliás, para você ter uma idéia, existe 20 e tantas definições diferentes de crime organizado. Ou seja, ninguém sabe o que seja isso. Então, como é que eu posso punir a questão do crime organizado? A primeira coisa do crime organizado é que ele é um mito. Agora, esse mito é muito importante para o sistema, porque na medida em que o sistema político, o sistema de poder, fala em crime organizado ele explora o medo da população. Não se demonstrou nenhuma vez a existência de uma estrutura secreta que se parecesse com um estado dentro do estado. Mas o fato é que isso tem um poder no discurso porque funciona como uma escusa para todos os fracassos do governo. “Olha, nós não estamos resolvendo o problema da fome, da miséria, do desemprego, da escolarização, da saúde, mas estamos lutando contra o crime organizado”. Nós lutamos contra um fantasma, porque ninguém sabe o que é esse crime organizado. Por outro lado é uma noção absolutamente inútil, porque em todos os Códigos penais existe uma norma que define o crime de quadrilha ou bando, que é inteiramente aplicável a essa questão do crime organizado. Na verdade, o grande crime organizado é o capital.

O que é, resumidamente, a Criminologia Crítica que o Sr. defende?

A criminologia crítica é um sistema de compreensão do problema do crime e do controle social que se caracteriza pelo abandono das explicações etiológicas ou causais de que existem sujeitos que nascem criminosos, o criminoso nato, o criminoso por tendência, para mostrar que o crime é uma realidade construída socialmente. Ou seja, em linhas gerais, ela deixa de tratar a criminalidade como uma realidade ontológica, pré-existente, a criminalidade como criminalidade, para tratar a criminalidade como criminalização. Volta os olhos para o sistema de justiça criminal. Primeiramente, não existe crime sem que o sistema de justiça criminal defina comportamentos como criminosos. Na medida em que ele define comportamentos como criminosos aquilo passa a ser criminalizado. E o criminoso é aquele sujeito que o sistema de justiça criminal diz que é criminoso. E aí o Poder Judiciário funciona seletivamente. Trabalhamos até com certos mecanismos psíquicos que funcionam na psicologia dos aplicadores do Direito, que determinam o resultado da aplicação do Direito. Por exemplo, nós achamos que o Direito se aplica segundo certas regras de interpretação como, por exemplo, a literalidade, o critério sistemático, o critério teleológico, e não percebemos que a aplicação do Direito é um ato profundamente emocional e que está ligado ao background psíquico do aplicador do Direito, que vem do seu passado e que é representado por preconceitos, estereótipos, traumas, experiências e um conjunto de idiossincrasias pessoais dos aplicadores do Direito e também por todas as deformações ideológicas na compreensão dos fatos da vida. Quer dizer, nós estamos chamando atenção para o fato de que o crime não pode ser entendido como uma realidade objetiva, pré-existente, mas como uma realidade construída. Estamos mostrando que juízes e tribunais produzem o fenômeno do crime, produzem o fenômeno da criminalidade. E aí nós estamos vendo a criminalidade do ponto de vista da criminalização. Então a criminologia crítica veio mostrar, sobretudo, essa seletividade do sistema da justiça criminal. E para explicar a seletividade, deu de cara com o poder, com o poder legislativo, judiciário e executivo. Mas não se limita ao funcionamento das instituições jurídicas e políticas do Estado. Dessa estrutura das relações sociais, vai mostrar que a gênese de todo comportamento anormal na sociedade está nesta relação fundamental desigual representada pelo capital X trabalho assalariado, e daí vai trabalhar com isso. Que dizer, não se separa as instituições, as estruturas, mas mostra-se a correlação entre as estruturas e as instituições como compondo uma unidade. A criminologia crítica nos abre a visão, a compreensão, para essa unidade entre o poder econômico, o poder político, as relações de poder e o Direito, essas dimensões da vida.

E as propostas da Criminologia Crítica caminham para a abolição do sistema criminal...

As propostas da criminologia crítica caminham naquela direção, mas destacando sempre que não é possível resolver o problema da criminalidade sem resolver o problema da democracia e que alguma esperança, se existe, está na transformação desse tipo de organização social por uma outra mais igual.


Criminologia Crítica - É um sistema de compreensão que deixa de tratar a criminalidade como tal, para tratá-la como criminalização. Volta os olhos para o sistema de justiça criminal. Chama atenção para o fato de que o crime é um fenômeno social construído pelo legislador, pela polícia e pelo sistema da justiça criminal.


Fonte: Gazeta do Povo, 04/04/2008.

2 comentários:

Unknown disse...

Se me permite, o Professor Juarez Cirino dos Santos esclarece com razão e emoção. Escavador de coisas preciosas, revestido de singular autenticidade e dom, concede-nos o privilégio de tomar estas lições.

Unknown disse...

Se me permite, o Professor Juarez Cirino dos Santos esclarece com razão e emoção. Escavador de coisas preciosas, revestido de singular autenticidade e dom, concede-nos o privilégio de tomar estas lições.

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