segunda-feira, 7 de abril de 2008

'A Polícia Civil deve investigar a gênese do crime'

ENTREVISTA/Jésus Trindade Barreto


Muito se discute estratégias e formas de se melhorar as ações da Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo. É o policial militar que está presente nas ruas, nas viaturas e nos postos de policiamento e que é identificado pela população por causa da farda.



À Polícia Civil cabe a função de investigar crimes e buscar provas que ajudem no processo penal. Mas será que é só isso? Jésus Trindade, delegado geral da Polícia Civil de Minas Gerais, acha que não. “A polícia brasileira é pautada pelo poder punitivo. A polícia de investigação se limita a produzir provas para incriminar o autor do crime sem avaliar as razões subjetivas que o levaram a cometer o crime”, avalia.



A entrevista do delegado e também pesquisador da Universidade de Minas Gerais ao Comunidade Segura abre a série de reportagens sobre o II Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reuniu, no Recife, Pernambuco, profissionais da área de segurança pública de todo o país.



Jésus Trindade deu sua opinião sobre as necessidades e as tendências que norteiam o futuro da polícia de investigação no Brasil.



Durante dois dias, policiais, pesquisadores, representantes de governo e sociedade civil participaram de apresentações e mesas redondas onde trocaram experiências e debateram questões ligadas à gestão e à operação da segurança pública no Brasil.



O senhor afirma que a função da Polícia Civil é mais do que produzir provas. Qual seria o novo papel da polícia investigativa?



Essa discussão está no documento “Modernização das Polícias Civis Brasileiras” que está disponível no site do Ministério da Justiça e da Senasp. Ele é um conjunto de reflexões que tentam repensar o papel da polícia investigativa no cenário da violência e da criminalidade. E sobretudo desmistificar um pouco a tradição de que ela é apenas uma polícia que investiga para atender ao processo punitivo, ou seja, para levar a pessoa em conflito com a lei até os tribunais penais.



Mas alguém tem que fazer isso, não é?



Nós não negamos que isso seja uma necessidade, mas defendemos a idéia de que investigar o crime significa investigar não somente a conduta do infrator, mas o fenômeno criminal.



Pode explicar melhor?



A polícia investigativa, quando tem que fazer essa tarefa de levantar as evidências do crime, ela necessariamente passa por todos os aspectos subjetivos desse crime. Ou seja, consegue perceber sentimentos, aspirações, os corações e as mentes das pessoas envolvidas no fenômeno criminal. É essa lógica que precisa ser levada em conta para que possamos saber como a investigação pode ajudar a recompor o imaginário coletivo em relação ao problema da criminalidade.



Mas essa mudança de estratégia da polícia investigativa implicaria na qualificação do policial.



É uma questão de capacitar sim. Na minha opinião é capacitar policiais que tenham formações principalmente em ciências sociais e humanas não só nas técnicas de apurar o crime evidenciando quem fez e como fez, mas apurar também o cenário da produção criminal dentro da família, na vizinhança, no bairro e saber qual o impacto que aquele indivíduo ou fato tem no conjunto e qual a relevância política que ele tem nesses cenários.



Ou seja, não é só capacitar o policial a usar novas tecnologias, por exemplo.



É capacitar mas segundo uma lógica diferente e não simplesmente ensinar a operar um novo sistema ou em tecnologia da informação. Isso tudo é importante mas não é a essência. Temos que capacitar o profissional da polícia de investigação para ser alguém que olhe para o infrator não como um inimigo mas como um problema, e que o papel dele é ajudar a compreender a gênese do crime.



E é aí que entra o papel preventivo da polícia de investigação?



A investigação tem condição de trazer insumos para a compreensão dos cenários em que se produz a violência. E isso tem a ver com prevenção. Tem a ver com criar chances para os jovens em vias de cooptação para a criminalidade para que eles tenham interesse por outras coisas que não o crime.



Mas o que a polícia investigativa faz com essa informação?



A polícia de investigação tem capilaridade e dinheiro público e pode contribuir ativando redes e instituições como ONGs que trabalham com prevenção da criminalidade. Pode tentar estratégias de articulação em rede para que aquela pessoa ou conjunto de pessoas possam ter alguma chance ou alternativas que a sociedade possa oferecer para eles. Talvez seja melhor do que esperar eles cometerem crimes para a gente punir.



Mas o policial normalmente é visto como o poder repressor do Estado...



O papel desses policiais na comunidade é dizer “eu sou a autoridade do Estado pronto a exercer a força no seu limite”, ou seja, prender as pessoas e eventualmente usar uma arma de fogo.



É preciso ficar claro que o policial tem o mandato de usar a arma até no sentido letal, mas esse policial tem que ter uma formação tal que ele saiba que o uso da arma é residual e que se um dia ele tiver que ativar esse recurso, vai fazê-lo depois de ter esgotado uma série de outros recursos - inclusive não se metendo em situações de risco que é uma coisa que a polícia brasileira faz demais e acaba tendo que atirar nas pessoas.



E como seria a convivência do policial civil com o policial militar dentro das comunidades?



Aí eu acho que é preciso haver uma agenda técnica e ética no sentido de criar uma disposição das instituições de tratar com clareza como é que se dá a articulação das duas polícias uma vez que elas são absolutamente imbricadas do ponto de vista técnico, não há como evitar isso.



É preciso construir uma pauta sistêmica e essa pauta tem que ter uma estratégia de governança que cada estado pode fazer. Minas Gerais está fazendo um trabalho muito bom nesse sentido e que não baseia a aproximação das polícias apenas no critério moral mas também em critérios técnicos. Não adianta esperar que as pessoas se disponham a fazer isso. É preciso criar ferramentas para que essas pessoas de articulem.



A área de formação dos policiais civis é homogênea?



Hoje chegam muitos profissionais nas polícias que têm formações diversas, pedagogos, filósofos, historiadores, geógrafos. O que eu faço com os saberes desses cidadãos brasileiros que se tornaram policiais? Eu construo uma teoria de aplicações desses saberes no conflito humano. A nossa orientação é o processo penal, ou seja, produzir provas materiais e subjetivas para o juiz julgar. Mas isso é pouco para uma instituição que está capilarizada e a sociedade quer a polícia presente mas a desconfiança é muito grande.


Comunidade Segura, 07/04/2008.

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