quarta-feira, 23 de abril de 2008

Entrevista - Antonio Carlos Carballo Blanco

'O policial não é um gari social'


Em mais uma entrevista da série “O que eles pensam”, o Comunidade Segura ouviu o tenente-coronel Antonio Carlos Carballo Blanco, ex-assessor técnico para Assuntos Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ).



Há 24 anos na corporação, Carballo é um dos maiores questionadores da atual política de segurança aplicada no estado. No auge da crise da corporação – em fevereiro, quando o antigo comando foi substituído -, ele entregou o cargo no que definiu como um “ato de libertação”.



O coronel, que é sociólogo e bacharel em direito, acredita que sem uma mudança estrutural no modo de organização e funcionamento das instituições encarregadas da segurança pública, não será possível construir um futuro melhor para as futuras gerações.



Seguindo os passos de outros profissionais da área de segurança pública, Carballo criou seu próprio blog onde defende conceitos como a valorização e capacitação do policial e a modernização da gestão das polícias. E pergunta: “qual o modelo de polícia mais adequado ao Brasil?”



O Comunidade Segura é um espaço criado para a reflexão e discussão de temas relativos à segurança pública e não se identifica com opinião de entrevistados, apenas dá oportunidade para a manifestação de opiniões, ainda que divergentes.



Por que o senhor entregou o cargo na época?



O pedido de dispensa de função não estava associado à saída do comandante-geral (coronel Ubiratan Ângelo). Na verdade, foi um ato de libertação.



Pode explicar?



Durante 24 anos, por omissão e irresponsabilidade, muitas coisas que aconteceram na corporação não foram devidamente esclarecidas, não foram devidamente encaminhadas. E esse sentimento de omissão, de permissividade esteve junto comigo durante todo esse período.



Foi uma decisão pessoal, motivada pela necessidade premente de serem efetivadas mudanças institucionais, não só na PM, mas em todo o sistema de Segurança Pública. E foi também uma decisão motivada pela certeza de que, se o nosso sistema não for alterado, nós não conseguiremos construir um futuro melhor para as futuras gerações.



Mas estando fora da corporação o senhor vai poder fazer mais pela PM do Rio?



Tudo está associado a uma lógica de lealdade, a uma lógica de valores. Apesar de reconhecer que sou parte ativa nesse processo, justamente por cultivar esse valor de lealdade eu não poderia assumir nenhuma função dentro da instituição sem deixar de me manifestar publicamente em relação a uma série de situações que impedem qualquer tipo de processo de mudança organizacional.



O que deveria mudar na polícia?



Eu diria que o problema não está na PM, está no sistema brasileiro de segurança pública. Nós vivemos algumas contradições. Uma delas está diretamente ligada ao fato de que nós não realizamos ainda a transição democrática exigida a partir da promulgação da Constituição de 1988.



E que transição é essa?



Toda a legislação que regula a corporação tem sua raiz no AI-5 (Ato Institucional nº 5, que entrou em vigor em agosto de 1968 dando amplos poderes ao presidente, permitindo o fechamento do Congresso, a cassação de políticos e a suspensão das garantias individuais). Ou seja, passados 40 anos, continuamos com a mesma estrutura de organização e funcionamento. No meu ponto de vista, isso é totalmente incompatível com a proposta de construção de um novo modelo de polícia e segurança cidadã.



E essa transição está prevista na Constituição?



Existe uma previsão legal – no texto constitucional, parágrafo 7° do artigo 144 – que determina que seja elaborada uma nova legislação, justamente para que as instituições que compõem o sistema de segurança pública possam efetivamente passar de um ciclo para o outro. Ou seja, para um modelo de funcionamento mais adequado a uma proposta de polícia cidadã. Esse é um dos aspectos.



E qual seria esse modelo? Quais seriam as diferenças?



As diferenças estão centradas em várias questões. A primeira delas é discutir qual o modelo de polícia mais adequado ao Brasil. O modelo atual tem como premissa a existência de funções policiais bipartidas. Ou seja, temos duas instituições policiais para exercerem atividades distintas. Em nenhum país do mundo – pelo menos as polícias que eu estudei ao longo de 24 anos de carreira – eu observei a existência desse tipo de modelo. Por que as outras polícias adotam como modelo funcional de polícia o ciclo completo da atividade policial? Isso nunca foi questionado.



Existe mais alguma questão importante?



Uma outra questão é a existência de uma peça chamada inquérito policial, herança do período colonial, e que se constitui numa peça meramente informativa, que não produz efeitos do ponto de vista da justiça de uma forma mais imediata.



Ou seja, o inquérito policial não tem valor legal. O processo se repete quando o Ministéro Público oferece denúncia ao Judiciário. Então tudo aquilo que foi feito antes não tem valor legal, tem que ser ratificado através do processo judiciário. Tudo que foi produzido pela investigação policial pode ser totalmente desconstruído.



Mas os dados do inquérito policial não são aproveitados?



Não, podem ser totalmente descartados. Por exemplo, se nós tivéssemos no Brasil um modelo baseado no juizado de instrução, desde o momento em que o indivíduo é preso em flagrante, nós já estaríamos contribuindo para a formação de provas que efetivamente já estivessem inseridas no processo judiciário. Então, muitas vezes, a pessoa é presa, o Ministério Público oferece a denúncia, e essa mesma pessoa, em juízo, diz que sofreu violação de direitos, foi submetida a tortura para que aquela declaração fosse obtida. Então tudo isso é descartado.



O senhor concorda com a política de confronto adotada pelo estado hoje?



Claro que não! O que existe hoje não pode ser chamado de política. É uma opção tática equivocada que reproduz um modelo ideológico baseado na força desqualificada, que fomenta inclusive a cultura bélica da organização policial. Uma cultura em que prevalece o conceito de servir e proteger sempre subordinado à idéia da força. O que nós precisamos é um modelo de segurança pública no qual nós sejamos capazes de inverter esse paradigma: fazer com que a força esteja subordinada ao serviço, e não o contrário. Daí a grande incidência de pessoas sendo vitimadas com as denominadas ‘balas perdidas’. A cultura bélica provoca esse tipo de efeito nas instituições policias.



Os policiais estão treinados para esse uso da força?



Tem esse aspecto também. Nós precisamos definir de uma vez por todas o que o policial é. Ele é um cidadão ou não? Isso tem a ver com a sua maneira de agir na sociedade. Falar sobre uso da força policial requer uma série de protocolos e procedimentos que precisam estar muito bem definidos e regulamentados para que o emprego da força esteja legitimado e legalizado do ponto de vista das suas conseqüências. O que vemos hoje é um apelo sem precedentes para que as forças de segurança sejam equipadas com armamento de guerra.



Mas, nesse caso, a polícia não estaria respondendo aos criminosos que estariam se equipando com armas cada vez mais poderosas?



Não. A questão hoje envolve a existência de grupos armados que dominam determinados espaços geográficos da cidade e isso não é exclusivamente uma questão de polícia, é uma questão de Estado. E isso demanda que nossos governantes reconheçam a incapacidade das forças policiais para lidar com esse tipo de realidade.



Mas o dever da polícia não é proteger a população?



Sim, mas essa cultura bélica potencializa o perigo. Em vez de prevenir, ela potencializa, ela gera riscos de produção de vítimas inocentes, danifica o patrimônio das pessoas. Então vai totalmente de encontro aos valores estabelecidos na Constituição. A segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, mas o dever orientado à proteção das pessoas, e não para a exposição dessas pessoas a riscos desnecessários, que ocorrem através de um discurso bélico. O resultado são pessoas inocentes sendo mortas, ficando incapacitadas. Tudo o que está sendo feito está na contramão dos preceitos da ordem constitucional. Não estamos garantindo a essas pessoas a integridade da vida e do patrimônio. Nós estamos potencializando os riscos, expondo essas pessoas de uma maneira muito perversa a esses riscos de vitimização e dano ao patrimônio.



Se a polícia não pode resolver, qual é a solução?



Eu defendo explicitamente que o governo federal lidere um processo em que nesses espaços geográficos seja efetivamente adotado o Estado de Defesa porque na realidade que temos hoje, vivemos uma situação de improviso. Para além da questão criminal da comercialização de drogas, trata-se de um problema específico de domínio territorial armado. As forças policiais não têm capacidade operacional, nem capacidade de sustentação da presença policial nesses espaços. É o que observamos durante esses anos todos. A polícia atua ou como uma força de intervenção tática pontual, adentrando no território e se retirando, ou como uma força de ocupação provisória. Isso não tem funcionado.



E como seria implementado o Estado de Defesa nessas comunidades confrontadas?



As Forças Armadas seriam mobilizadas em contingente suficiente para que aquele território desintegrado do território estadual seja efetivamente retomado e garantido às pessoas que vivem naquele espaço o convívio com a ordem democrática. O que a gente observa é que as instituições republicanas não funcionam nesses espaços. O que existe é um processo de expansão descontrolado, de ocupação desordenada do solo urbano e, mais grave, o domínio territorial armado de grupos civis que intimidam, aterrorizam pessoas, impedindo-as que exerçam plenamente o direito à cidadania.



Mas não correríamos o risco de ter mais confrontos?



A presença massiva das Forças Armadas garantiria e inibiria riscos de vitimização desnecessários, porque o terreno estaria saturado. Na realidade, é uma operação que eu denomino “desativação de minas humanas”. É uma operação que vai demandar por parte do Estado um acompanhamento sistemático, um esforço de varredura para desativar minas humanas e para desmobilizar civis armados.



Mas a entrada das Forças Armadas não legitimaria uma espécie de guerra nessas localidades podendo causar muito mais mortes?



Não sei. A experiência do Haiti está aí pra comprovar isso. O Haiti é aqui. As Forças Armadas estão no Haiti.



Mas será que aqui no Brasil o Exército funcionaria como uma força de paz como é no Haiti?



Não sei. Se nós não estamos em guerra, o Exército só pode entrar como força de paz. Nós estamos numa situação caracterizada por um estado de grave perturbação da ordem pública, onde territórios estão sendo dominados por grupos civis que desafiam a ordem jurídica, e onde existe um prejuízo muito grande ao funcionamento das instituições democráticas. Isso, no texto constitucional, já caracteriza a possibilidade de decretação do Estado de Defesa. Só que ninguém reconhece a fragilidade do sistema e ninguém tem a coragem moral de enxergar esse quadro e fazer com que essa situação seja revertida.



Em paralelo a isso, qual é a solução para a questão das condições de trabalho dos policiais?



Nós temos que reformar a segurança pública no Brasil. Primeiro, nós temos que rever toda essa legislação. Nós somos policiais e o parâmetro do policial é a lei, mas isso não impede que o modelo de organização não seja baseado no modelo militar. Uma coisa é a ideologia, outra coisa é a estrutura de funcionamento – são coisas totalmente diferentes. O modelo militar hoje é uma referência para a estruturação das organizações policiais.



Quais pontos da legislação que regula as polícias são mais críticos?



Com relação à ocupação do policial fora da corporação. Será que ele pode ser chefe de empresa de segurança privada sendo policial da ativa? Não seria incompatível com o serviço dele? Porque, para esse policial da ativa, para o negócio dele prosperar, ele tem que apostar na insegurança. E hoje, o que a gente vê é que, infelizmente, há muitos policiais donos de empresas de segurança, muitos que fazem “bico”.



O que a gente vê é um processo gradativo de privatização da segurança pública no nosso país. Infelizmente, a segurança. pública – no RJ principalmente – ela sobrevive graças ao financiamento privado. E sobrevive mal, pois as instituições já estão falidas.



O que mais?



O regime de trabalho é uma outra questão. Eu não conheço nenhum país do mundo em que um policial trabalhe 12 horas por dia. Qual a qualidade de vida que esse policial tem pra ele, como cidadão, para a sua família, tendo que sair do trabalho e ir pro ‘bico’, do ‘bico’ pro trabalho? Qual a situação dele como policial quando ele se defronta com uma situação de conflito? Será que essa situação não vai provocar uma reação inadequada, não vai provocar um risco de morte para ele, para o companheiro ou para qualquer outra pessoa?



São questões fundamentais que têm que ser discutidas. Os direitos, os deveres e as proibições. Não podemos continuar adotando esse modelo. Esse modelo é incompatível com um Estado que se diz democrático de direito. É incompatível com uma polícia que almeja ser uma polícia cidadã. E o primeiro passo pra isso é resgatar a dignidade do policial.



Mas esse resgate da dignidade tem que ser feito não só perante a corporação, mas também perante a sociedade.



Com certeza, a sociedade vê o policial com maus olhos. Muita gente vê no policial como um gari social, responsável pela limpeza da escória humana. É a mesma sociedade que defende pena de morte, que defende o extermínio de pessoas ligadas à criminalidade. Só que defendem isso quando os filhos não são deles. É a mesma sociedade que paga o policial para matar.



O senhor acredita que a transferência da gestão da segurança para as administrações municipais poderia tornar a polícia mais eficiente?



Eu particularmente defendo um modelo de segurança pública com a participação efetiva do município. É lógico que nem todos os municípios vão ter essa capacidade, pois 70% dos municípios têm menos de 20 mil habitantes. Mas eu vejo que o município tem sim uma parcela significativa de responsabilidade e ela tem que ser reconhecida. Não importa a quantidade de polícias. O importante é o pressuposto da ação policial, que é a integridade do ciclo completo da atividade policial, que aqui não acontece.



Comunidade Segura, 23/04/2008.

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