segunda-feira, 21 de abril de 2008

Assassinato como espetáculo

Poucas horas após a polícia afirmar que o assassinato da pequena Isabella Nardoni, de 5 anos, estava "70% esclarecido", o pai e a madrasta da menina - que haviam passado nove dias na cadeia - foram libertados por ordem judicial. Alexandre Alves Nardoni, de 29 anos, e sua mulher, Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá, de 24, ao serem soltos, foram, ambos, protegidos por escolta policial.

A saída de Alexandre do 77º Distrito Policial (DP) - no Bairro de Santa Cecília, centro da cidade de São Paulo - foi presenciada por cerca de 200 pessoas, que gritavam "assassino" e "lincha". Anna Carolina, que estava no 89º DP (Portal do Morumbi, na zonal sul), também foi hostilizada por curiosos na porta da delegacia. "Pena de morte", "assassina" e "cadeira elétrica" eram alguns dos gritos mais comuns.

Com as televisões e as rádios informando a todo tempo o trajeto de Anna Carolina Jatobá e de Alexandre Nardoni, das delegacias ao Instituto Médico Legal, uma multidão se foi formando em frente ao local.

"Morre, desgraçado, covarde", gritava um transeunte. "Também acho que foi a madrasta", dizia outro. Irritava-se a platéia de curiosos, que pouco via além dos logotipos das emissoras nas costas dos cinegrafistas e do espocar dos flashes dos fotógrafos.

O bárbaro assassinato da pequena Isabella desencadeou um forte e compreensível desejo social de punição. Alguns policiais, armados de precipitação e sede de notoriedade, acabaram pautando a opinião pública e a própria mídia. Quando o pai de Isabella, um dia depois do crime, saía do distrito policial onde prestara depoimento, uma delegada presente no local dirigiu-lhe gritos de "assassino". A encarregada do inquérito, num procedimento surpreendente, informou à imprensa a respeito dos níveis porcentuais já atingidos no esclarecimento do caso. A loquacidade inicial do promotor, intensa e diária, mereceu reparos do Judiciário. As autoridades, de fato, armaram o espetáculo e alguns setores da mídia, sobretudo certos telejornais, entraram em cheio no crime do ano. A repetição exaustiva de cenas garantiu, certamente, uma bela audiência. Não sei se garantirá a credibilidade. Os jornais têm sido razoavelmente sóbrios, mas a televisão tem forçado a mão.

Quando escrevo este artigo, sob o impacto da brutalidade, não conhecemos ainda o desfecho do caso. As suspeitas contra o pai e a madrasta, fortes e perturbadoras, levarão ao indiciamento. Mas não podem ser transformadas em instrumento de uma irreparável execração pública. É preciso esperar a decisão da Justiça. Para além do crime terrível, cuja investigação parece apontar na direção daqueles que deveriam dar amor e proteção à frágil vítima, paira no ar uma pergunta inquietante: como explicar a ruptura, cada vez mais freqüente, de todos limites, incluindo os da própria natureza humana, que parece estar subjacente na cultura que perfila nossos tempos de obsessão pelo prazer e de fuga quase patológica da dor, do sacrifício e de abnegação? Trata-se de uma reflexão que se impõe e que será objeto de um próximo artigo.

A era do entretenimento, cuidadosamente medida pelas oscilações do ibope, tem nos crimes e na violência um de seus carros-chefe. A transgressão passou a ser o espetáculo mais rotineiro de todos. Alguns setores do negócio do entretenimento, apoiados na manipulação do conceito de liberdade de expressão, crescem à sombra da exploração das paixões humanas. Ao subestimar a influência da violência ficcional, omitem uma realidade bem conhecida da psicologia: a promoção do sadismo como instrumento de diversão não produz a sublimação da agressividade, antes representa um forte incitamento a comportamentos anti-sociais. Morte, agressão e violência, realidades banalizadas por certos telejornais, acabam sendo incorporadas pelos criminosos potenciais. A onipresença de uma TV pouco responsável pode estar na origem de inúmeros comportamentos patológicos.

O culto ao espetáculo e a submissão aos registros da audiência têm ocupado espaço em alguns meios de comunicação. No imenso shopping das emoções promovido pela força do negócio do entretenimento que tudo banaliza e transforma em show, há prateleiras para todos os gostos. Vivemos sob o domínio do inconsistente e sucumbimos à tirania do politicamente correto. Existe, freqüentemente, uma forte relação de amor e ódio, uma paradoxal cumplicidade momentânea entre a mídia, suas celebridades e a opinião pública.

A trágica morte da menina Isabella escancara a crescente demanda social pelo mercado das sensações. Muitos dos que criticam os abusos da TV são os mesmos que se hipnotizam com as chamadas mórbidas de certos telejornais. Rigorosamente os mesmos que compram os jornais populares que depois os condenam. A indignação da opinião pública contra setores da imprensa, compreensível e lógica, não pode ocultar o seu lado hipócrita e esquizofrênico.

É muito perigoso confundir informação com espetáculo. Quando isso acontece - e, infelizmente, tem ocorrido em algumas coberturas policiais -, a notícia se transforma num show co-produzido por repórteres, delegados e promotores. Corre-se o risco de condenar inocentes, destruir patrimônios morais e, a médio e a longo prazos, comprometer gravemente a própria credibilidade da informação. O esforço para conquistar audiências, legítimo e necessário, não pode ser feito de costas para a ética.

O show business é uma realidade, mas ainda há espaço, e muito, para o jornalismo de qualidade. A hora é de freio de mão e de bom senso.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo,
professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco-Consultoria em Estratégia de Mídia
E-mail: difranco@ceu.org.br


Estadão, 21/04/2008.

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