quinta-feira, 3 de abril de 2008

As prisões que matam

Novo estudo mostra que a cada ano mais de 300 presos são assassinados no Brasil. A violência transborda das cadeias para as ruas e toda a sociedade paga a conta.


Na noite de 29 de outubro, uma briga com o vizinho levou o trabalhador rural Agamenon Pereira, de 42 anos, para a Cadeia Pública de Araguari, no Triângulo Mineiro. Horas depois, o agente penitenciário Fernando Fernandes Martins compareceu a um pronto-socorro. Foi atendido por ter levado uma mordida de Agamenon. Ao ser atendido, o agente disse a uma enfermeira – segundo o Ministério Público – que mataria Agamenon “de tanto bater”. Pouco depois, era a vez de Agamenon dar entrada no posto de saúde, com múltiplas fraturas. Morreu logo em seguida. “Ele era um homem bom, que nunca teve problema com a polícia”, diz a irmã de Agamenon, Neura de Fátima Nascimento.

Mortes como a de Agamenon não são casos isolados. O risco de morrer em uma prisão brasileira é 128 vezes maior que em uma prisão de um país desenvolvido, como a Inglaterra. ÉPOCA teve acesso a um detalhado levantamento feito em caráter reservado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça. De janeiro do ano passado até agosto deste ano, um período de 20 meses, 558 presos foram assassinados enquanto cumpriam pena. Em 2006, foram 80 homicídios para cada grupo de 100 mil presos. A taxa de homicídios geral no país é de 24 por 100 mil pessoas. “Esses números só confirmam a reputação das prisões do Brasil, conhecidas por serem extremamente violentas”, diz Vivien Stern, pesquisadora sênior do Centro Internacional de Estudos Prisionais, ligado à Universidade de Londres. Na Inglaterra, onde a população carcerária é de 80 mil pessoas, o índice é de 0,625 assassinato por 100 mil, o que significa uma morte a cada dois anos. “O resultado desse estudo é a demonstração da falência do sistema”, diz o diretor-geral do Depen, Maurício Kuehne.

Essa falência já seria grave se ficasse limitada às prisões. Mas ela não afeta apenas quem está atrás das grades. James Cavallaro, professor da Faculdade de Direito da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e pesquisador dos sistemas penitenciários na América Latina, explica que, ao não atentar para o caos dentro dos presídios, toda a sociedade é punida. “Dos países que pesquiso, o Brasil é o que guarda a relação mais forte entre o que acontece dentro das cadeias e a violência nas ruas”, afirma. Cavallaro dá um exemplo: os ataques do PCC em São Paulo, no ano passado. Para protestar contra o que chamam de “opressão carcerária”, os líderes da facção espalharam o terror nas ruas.

Dentro das prisões, a maior parte dos assassinatos ocorre por desavenças entre os presos, seja em acertos de contas, seja nos confrontos entre facções rivais. Foi assim que três detentos morreram no presídio Aníbal Bruno, no Recife, na semana passada. Com capacidade para 1.400 pessoas, a penitenciária abrigava 3.900 quando a rebelião estourou, no domingo 11. Um dos presos foi degolado. Fábio Batista da Fonseca havia sido condenado a 12 anos e quatro meses em regime fechado por assalto e formação de quadrilha. Pela lei e por causa do bom comportamento, já deveria estar em liberdade condicional, por ter cumprido um terço da pena. Desde o dia 11 de junho, o pedido para um alvará de soltura dormia nas prateleiras da Justiça. Na segunda-feira 12, ele foi morto a facadas. Decapitado, teve a cabeça arremessada para fora da prisão – o lugar onde Fábio deveria estar havia meses.

O artigo 5o da Constituição, que trata dos direitos e das garantias fundamentais do cidadão, assegura a integridade física e moral dos presos. “Se o sistema funcionasse bem, as pessoas presas voltariam como alguém que pensou no que fez e que decidiu mudar. O modelo atual promove o contrário: cria criminosos de carreira”, diz James Cavallaro.

Além dos assassinatos cometidos pelos próprios presos, uma parte das mortes é fruto da violência dos agentes penitenciários. Esse teria sido o caso do motorista Divanilson André de Santana, de 29 anos, encontrado morto em 31 de outubro numa cela da Delegacia de Sirinhaém, em Pernambuco. Divanilson foi preso por ter se descontrolado durante um culto evangélico. Duas horas depois, estava morto, só de cuecas e algemado. A polícia diz que ele se suicidou com a própria camisa. A família conta outra história. “Todo mundo viu os policiais batendo nele. O rosto ficou desfigurado. Eu tirei foto de tudo”, diz uma prima da vítima, Abinoan Francisca da Paz. O delegado de Sirinhaém fechou o inquérito sem ouvir testemunhas. A Secretaria de Defesa Social reabriu o caso, com outro delegado, e pediu um novo laudo ao Instituto Médico-Legal.

Nas penitenciárias brasileiras, os suicídios nem sempre são o que parece. “Sempre que há um assassinato, é feita uma sindicância interna para encontrar o culpado”, diz o padre Valdir João Silveira, da Pastoral Carcerária. No caso de suicídio, não há investigação. João Rinaldo Machado, presidente do sindicato dos funcionários dos presídios paulistas, diz que há relatos de casos em que presos foram obrigados por outros a ingerir grande quantidade de drogas e morreram de overdose. Casos assim não são computados como homicídios. Vão para a lista de “mortes naturais”. No Brasil, neste ano, 525 óbitos de presos foram parar nessa lista, 247 só em São Paulo.

O alto índice de “mortes naturais” revela outro problema. “Há presos que morrem por falta de socorro. Para encaminhá-los ao hospital, é necessário que a Secretaria da Segurança Pública mande uma escolta. Muitas vezes, ela não aparece”, diz o padre Valdir. Para o sindicato dos funcionários de presídios, faltam médicos nas unidades. Muitas vezes, quem dá remédios aos presos são os próprios agentes penitenciários.

Na semana passada, o relator especial das Nações Unidas Philip Alston, que passou 11 dias no Brasil investigando execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, sugeriu no Congresso Nacional um conjunto de medidas para melhorar a atuação policial e a situação dos presídios no país – com a qual se disse “chocado”. Entre as recomendações da ONU está garantir a segurança e os direitos dos presos.

Na Câmara dos Deputados, uma comissão parlamentar de inquérito foi aberta em agosto para fazer um diagnóstico das prisões brasileiras. A CPI do Sistema Carcerário quer investigar desde as condições físicas das penitenciárias até a ação das facções criminosas dentro das cadeias. “Ao final, nós queremos propor a uniformização do sistema prisional brasileiro”, diz o presidente da CPI, deputado Neucimar Fraga (PR-ES).


Fonte: Epoca

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