terça-feira, 22 de abril de 2008

Artigo: A segurança pública e a escassez de recursos: o "caso L." do Pará

Gustavo A. Paolinelli de Castro

Mestre em Direito Público/MG
Especialista Direito Constitucional Universidad Castilla-La Mancha, Toledo, Espanha
Mestre em Direito Público
Professor da PUC/MG


CASTRO, Gustavo A. Paolinelli de. A segurança pública e a escassez de recursos: o "caso L." do Pará. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 22.04.2008.

1. Introdução

Este artigo pretende examinar os impactos da escassez de recursos no âmbito da segurança pública. Partindo do emblemático caso da adolescente L., presa em uma cadeia pública na cidade de Abaetetuba, no Pará, pretende-se traçar alguns questionamentos a respeito desse fenômeno, buscando lançar algumas luzes sobre esta polêmica questão.

2. O “caso L.” [1]

Em 21 de outubro do corrente ano, L., uma adolescente de 15 anos, foi presa em flagrante por furto na cidade de Abaetetuba no Pará.

Entretanto, ao invés de ser encaminhada ao Conselho Tutelar – como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13 de Julho de 1990 - L. foi recolhida à cadeia da cidade na companhia de mais de 20 detentos, que iniciaram uma série de agressões sexuais contra a jovem.

No dia 07 de novembro o delegado regional pediu a transferência da jovem para um presídio feminino em Belém, mas não foi atendido, segundo noticiou o jornal Folha de S. Paulo.

Em 14 de novembro o Conselho Tutelar, até então desinformado sobre o encarceramento da adolescente, recebeu uma denúncia anônima acerca dos fatos. Logo em seguida a jovem foi liberada.

Após a sua soltura, iniciaram-se inúmeras justificativas para o ocorrido.

No dia 20 do mesmo mês, a Juíza da comarca, juntamente com promotores e defensores públicos lotados no município, asseverou que não sabia “do caso da jovem antes do dia 14 de novembro”, de acordo com a matéria veiculada.

Posteriormente, no dia 23, a governadora do Estado, Ana Júlia Carepa, admitiu que casos como a da jovem L. “ocorrem há algum tempo.”

No início do mês de dezembro foi a vez da Corregedoria de Polícia do Estado do Pará tentar se explicar. Segundo a corregedora do órgão, Liane Martins, a responsabilidade era da própria adolescente. Perguntada a respeito da razão pela qual a garota ficou presa com homens, respondeu que “não havia espaço destinado só as mulheres, mas que cabia ao sistema penal [Justiça e superintendência do sistema prisional] colocar as pessoas no espaço adequado.” Afirmou também que os delegados “de certa forma, foram levados ao erro” uma vez que a adolescente mentiu a respeito da idade.

Em síntese, foram esses os acontecimentos do “caso L.”.

O caso, como noticiado, é extremamente polêmico e poderia ser explorado mais detidamente sob diversos ângulos. A abordagem, contudo, tem a finalidade de compreender os efeitos da limitação orçamentária, quando da concretização do direito à segurança pública.

3. A Escassez de Recursos e a segurança pública

Os direitos sociais, equivocadamente considerados como aqueles que exigem uma prestação do Estado,[2] são ainda renegados a uma esfera secundária de concretização no Estado brasileiro.

Isto é, mesmo com a superação da dicotomia entre direitos negativos e prestacionais (CRUZ, 2007; SILVA, 2007; AMARAL, 2001), continua sendo comum a justificativa de que os direitos sociais não são efetivados por ausência de bens.

Sem adentrar no mérito de como essa distribuição é elaborada, embora seja de extrema relevância, é preciso registrar que os efeitos dessa limitação são sentidos de perto pela população, principalmente aquela mais vulnerável.

Questões voltadas para a saúde são paradigmáticas nesse sentido. É, por exemplo, o caso de um único médico que, na fila de urgência, tem que optar por salvar um ou outro paciente.

Ocorre, entretanto, que essas questões não se desenvolvem somente no âmbito da saúde. É necessário reconhecer que as limitações orçamentárias já estão presentes também na área da segurança pública, impondo ao Judiciário soluções para questões absolutamente trágicas.[3]

Casos como o do juiz da comarca de Contagem, Minas Gerais, em 2005, dão a dimensão da tragédia. Dada a má condição das carceragens do município, o magistrado expediu alvarás de soltura, com fundamento na dignidade dos presos. O Tribunal de Justiça do Estado, na ocasião, cassou a liminar e afastou o Juiz das atribuições do cargo, baseando-se na supremacia da segurança da coletividade em face da integridade dos detentos.

Em 1996, o Supremo Tribunal Federal já havia seguido essa linha de raciocínio, mesmo reconhecendo as péssimas condições das prisões.[4]

No corrente ano, nos últimos dois meses, o problema entrou novamente em pauta. Primeiro com a soltura em massa de presos por juízes de cidades do interior de São Paulo que, por falta de presídios, liberaram detentos condenados por crimes patrimoniais e hediondos.[5] Em segundo, em razão do “caso L.”.

O caso analisado, portanto, traz de forma dramática a questão da escassez e os problemas que ela acarreta.

Inicialmente porque expõe a fragilidade e a falta de preparo dos agentes públicos na consolidação e efetivação dos direitos fundamentais, em franco atentado ao que reserva a Constituição à Administração Pública, como na hipótese de estrita observância ao “princípio” da eficiência, por exemplo.

Além disto, situações como a aqui relatada alargam ainda mais a distância entre a norma e a sua concretização, tal como já apontava Lassalle (2001) ao tratar da Constituição como uma simples “folha de papel.”

A questão também é de extrema importância para reacender o debate a respeito dos meios de responsabilização do Estado no caso de omissão, isto é, como compeli-lo a indenizar uma vez que o mesmo não dispõe de recursos nem mesmo para efetivar a ordem pública?

Por fim, tem relevância o tema à medida que somos obrigados a repensar as teorias da argumentação utilizadas pelo Judiciário nas hipóteses que versem sobre limitações orçamentárias e decisões trágicas no âmbito da segurança pública.

4. Conclusão

O fenômeno da escassez dos recursos em questões relacionadas ao direito à segurança pública, portanto, ainda precisa ser levado a sério, na melhor expressão de Dworkin. Como bem colocava Häberle (2002) somos todos intérpretes da Constituição, e, nesse sentido, o debate acerca das prioridades e da concretização dos direitos fundamentais compete a toda sociedade.

Para evitar que casos como a da jovem L. se tornem recorrentes no Brasil, acredita-se que o primeiro passo consiste em conceder aos afetados pelas decisões tomadas no âmbito institucionalizado, condições de adentrar em discursos racionais sem qualquer forma de coação. (HABERMAS, 2005) Sem negar a extensão e complexidade do problema, que tem gênese multifatorial, entendo, como já afirmei em outras oportunidades com base no pensamento habermasiano,[6] que é somente a partir das condições de ingresso no discurso que o fenômeno começará a ser realmente tratado com a devida importância.

5. Referência

AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro. Renovar. 2001.

BOTTOM, Shelley de. Diagnóstico da Segurança no Brasil. Rio de Janeiro. 25 set. 2007. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2007.

BRASIL, Kátia. Policiais do caso L. não merecem demissão, afirma corregedora. Jornal Folha de S. Paulo. São Paulo. 06 dez. 2007. Caderno C1.

CASTRO, Gustavo Almeida Paolinelli de. Política de Segurança Pública Participativa e Direitos Fundamentais no Estado Democrático de Direito: a questão da legitimidade do programa Olho Vivo no município de Belo Horizonte. 2007. 102f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica E(m) Debate: o constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte. Fórum. 2007.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. 4º ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005.

LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Tradução de Walter Stönner. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.

SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: leis orçamentárias como instrumento de implementação. Curitiba. Juruá Editora. 2007.

[1] Retrospecto elaborado a partir do jornal Folha de S. Paulo que circulou no dia 06 de dezembro desse ano.

[2] O equívoco é patente após o trabalho de Sunstein e Holmes, a respeito dos custos dos direitos, isto é, todos os direitos têm um caráter negativo e prestacional. (AMARAL, 2001)

[3] Mesmo com o aumento de 2% da receita em quase todos os Estados brasileiros, segundo aponta pesquisa de João Trajano Sento-Sé e Eduardo Ribeiro (BOTTOM, 2007) nos anos de 1995 a 2005, os déficits na área da segurança pública ainda são visíveis.

[4] Habeas Corpus nº 73913-0

[5] Conforme veiculado pelo Jornal Estadão em 30 de nov. de 2007. Disponível em: . Acesso em 06 dez.2007.

[6] Ver Castro (2007).

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