sábado, 12 de abril de 2008

Artigo: O dolo eventual nos crimes de trânsito e a navalha de Occam

Alexandre Magno Fernandes Moreira

Procurador do Banco Central/DF
Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo na Universidade Paulista e nos cursos preparatórios Obcursos, Objuris, Pró-Cursos e Objetivo
Editor do site: www.alexandremagno.com

MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. O dolo eventual nos crimes de trânsito e a navalha de Occam. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 11.03.2008.

“Quem dirige a 165 km/h, num local onde é permitido trafegar a 70 km/h, pode não ter a intenção de matar, mas certamente assume o risco pela tragédia. Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que Rodolpho Félix Grande Ladeira, denunciado pela morte do advogado Francisco Augusto Nora Teixeira em um acidente de trânsito em Brasília, deve ser julgado pelo Tribunal do Júri do Distrito Federal. É inédita a decisão do STJ de mandar a júri um acusado por crime de trânsito.”[1]

William de Occam foi um filósofo inglês do século XIV, que enunciou a célebre teoria da “navalha de Occam”, segundo a qual devemos escolher dentre as várias explicações válidas para o mesmo fato, aquela que for mais simples. De acordo com ele, o homem, em suas teorias, deveria sempre eliminar o supérfluo.

Se analisarmos a história das ciências humanas, veremos o quanto Occam foi “desautorizado”. Imensos volumes são escritos para tratar de filigranas que não têm utilidade prática nenhuma. Nesse contexto, parece que o Direito Penal é imbatível. É só pensarmos na complexidade que se atingiu com a teoria do crime (será que alguém pode dizer a diferença prática entre causalismo, finalismo e tantas outras teorias?).

Da mesma forma, complicou-se de maneira desmedida uma distinção relativamente simples entre dolo e culpa. Dolo é a intenção de praticar o crime, enquanto culpa é o descuido, ou seja, a ausência de um cuidado que o agente deveria e poderia ter em uma determinada situação.

A complicação situa-se no que poderíamos chamar de “meio termo” entre dolo e culpa. Trata-se do “dolo eventual”, em que o agente não tem por objetivo cometer o crime, mas assume o risco de fazê-lo. A própria expressão é uma contradição de termos. Como pode haver um dolo que não seja intencional? Sempre que alguém, de alguma forma, age, não assume o risco de produzir um resultado danoso?

Todos nós sabemos que milhares de brasileiros são mortos a todo ano em acidentes de trânsito. É inevitável sabermos, também, que o simples fato de colocarmos um veículo em movimento significa que já assumimos o risco de produzir um resultado danoso. Queremos acabar com as mortes no trânsito? Basta extinguirmos os veículos automotores! Mas, obviamente, ninguém está disposto a isso.

Podemos argumentar que há uma grande diferença entre alguém que assume esse risco a 70 km/h e aquele que está a 165 km/h. De fato, há. Porém, a diferença é quantitativa, não qualitativa. Nos dois casos, existe a assunção do risco. A questão é que, no segundo, o agente ultrapassa, em muito, o risco socialmente permitido.

Outro problema do conceito de dolo eventual é o fato de ser quase inconcebível alguém que aja pensando algo do tipo “aconteça o que acontecer, agirei desta forma”. Mesmo quem dirige em alta velocidade ou embriagado, dificilmente pensaria assim. Além do mais, como saber o que se passa na cabeça do agente? Ora, por mais que a ciência tenha evoluído, ainda é impossível a leitura de pensamentos.

Resta apenas, ao juiz, exercer um discricionário juízo de valor a respeito do agente. O magistrado funciona quase como um adivinhador, nos casos em deve basear sua decisão somente no que se passa dentro da cabeça do agente. Se esse dilema já existe quando devemos distinguir entre dolo e culpa, imaginemos quando se trata da “figura intermediária”, o dolo eventual. Não é à toa que Hans Welzel considera o dolo eventual como uma das questões mais tormentosas do Direito Penal.

De qualquer maneira, o juiz deve decidir. Já que não pode ler pensamentos, começa a estabelecer critérios mais ou menos arbitrários para definir o caso. Esses critérios vão depender, em boa parte, da pressão da opinião pública.

Nesse ponto, voltamos aos crimes de trânsito. O Brasil é um dos campeões mundiais em acidentes fatais de trânsito. Quase todas as pessoas já tiveram um parente ou um amigo vitimado no trânsito. Boa parte dos acidentes de trânsito decorre do consumo de álcool ou de velocidade excessiva.

Porém, nas duas situações, o agente realmente acredita que não acontecerá nada. Além do mais, é comum, nessas situações, o agente ter uma auto-estima excessivamente elevada que faz com ele, sinceramente, acredite que nada vai acontecer. Aliás, imaginar que o motorista prevê o resultado lesivo é considerá-lo um potencial suicida, pois suas chances de morrer em um acidente não são nada desprezíveis. Na verdade, ele está agindo com imprudência, uma das modalidades de culpa. Normalmente, ele sabe como dirigir da maneira adequada, mas não o faz, acreditando que nada de mais acontecerá.

Por que, então, recorre-se cada vez mais ao dolo eventual em acidentes trânsito? Por que será que certos tribunais, como o TJRS, chegam a utilizar até fórmulas matemáticas (dolo eventual = velocidade excessiva + embriaguez) para justificar o uso do instituto?

Em nosso entendimento, há uma resposta simples para isso: a pena para o homicídio culposo no trânsito, mesmo depois do Código de Trânsito Brasileiro, continua a ser considerada irrisória pela opinião pública: detenção, de dois a quatro anos, que pode ser facilmente convertida em pena alternativa. Não há notícia de alguém preso no Brasil por homicídio culposo no trânsito.

Essa pena é desproporcionalmente pequena se a comparamos com a do homicídio doloso, que varia de 6 a 30 anos. A questão torna-se especialmente injusta quando reconhecemos o fato de que aquele que mata por descuido, ou seja, que poderia ter evitado a morte de outrem, demonstra um profundo desprezo pela vida alheia. Várias vidas são colocadas em risco quando um motorista trafega sem condições para tal. Muitas vezes, essa pessoa se revela muito mais perigosa do que o homicida doloso, pois, nesse caso, sua atitude está voltada para uma pessoa específica.

Rodolpho não quis matar ninguém. Nem diretamente, nem eventualmente. O que aconteceu, de fato, foi uma culpa gravíssima de sua parte, uma imprudência absolutamente imperdoável. Infelizmente, o legislador considerou que pessoas como ele devem, na pior das hipóteses, ficar, no máximo, quatro anos presas.

A crescente consideração do dolo eventual nos crimes de trânsito demonstra simplesmente que o Judiciário, implicitamente, percebe o descompasso entre a lei e as demandas da sociedade e utiliza um artifício para atender à opinião pública.

[1] Noticiado em http://conjur.estadao.com.br/static/text/61372,1. Acessado em 15.11.2007.

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