terça-feira, 29 de abril de 2008

Artigo: Acidente de trânsito - É inconstitucional o homicídio culposo qualificado

Agnaldo César Gazetta

Delegado de Polícia/SP

GAZETTA, Agnaldo César. Acidente de trânsito - É inconstitucional o homicídio culposo qualificado. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 29.04.2008.

O ordenamento jurídico brasileiro, com base na Constituição da República, se molda a partir dos princípios-garantias e princípios-direitos, em consonância com “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” (parágrafo 2º, artigo 5º).

Ministra Miguel Reale, salientado por Josef Esser, que enquanto são princípios, eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força cogente, mas não lhes altera a sua substância, constituindo um “jus” prévio e exterior à “lex”1; onde se firmaram as normas originárias em que se estrutura o próprio Direito2. Assim também ensina Manoel Gonçalves Ferreira3.

Base fundamental está na sua instituição, o “Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana” (artigo 1º, III). Interpretando-o, o comemorável Ives Gandra Martins leciona que “Quis significar que o Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa humana. Portanto, o que ele está a indicar é que é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas”4.

Já no âmbito do Direito Penal, sob os dogmas da teoria finalista da ação, em consonância com tais princípios, busca-se avaliar o comportamento reprovável do agente, o seu desvalor e não o efeito jurídico produzido pelo resultado. Doutrina Hartmann, que a ação está constituída pela direção do suceder real, pelo desejado pelo agente, por interposição de componentes determinantes. A ação é uma atividade final humana. Partindo disso, Welzel afirma que a ação humana é o exercício da atividade finalista. É, portanto, um acontecimento finalista e não somente causal.

A finalidade, diz ele, ou atividade finalista da ação, se baseia em que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento, pode prever as conseqüências de sua conduta, propondo, dessa forma, objetivos de distinta índole. Conhecendo a teoria da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos. A causalidade, pelo contrário, não se encontra ordenada dessa maneira.

Ela é cega, enquanto a finalidade é vidente5. Com efeito, a vontade abrange: a) o objetivo que o agente pretende alcançar; b) os meios empregados; e c) as conseqüências secundárias. Ora! Então, a consciência da relação causal objetiva entre conduta e resultado é elemento do dolo. Assim, ficam excluídos do tipo todos os fenômenos a respeito dos quais se possa afirmar que o agente deu causa ao resultado típico sem, contudo, deter o domínio do fato. Os Fatos que não puderem ser reconhecidos a alguma forma de vontade do agente, por se apresentarem puramente causais, devem ser reputados atípicos. Para ser-se agente de um crime não basta, pois, figurar fisicamente na cadeia causal como natureza morta. É preciso contribuir no resultado como pessoa humana, dotada de vontade6.

Dessa forma, as normas jurídicas não podem, pois, ordenar ou proibir meros processos causais, mas somente atos orientados finalisticamente (ações) ou omissões desses mesmos atos7. Completando esse ensinamento de Welzel, Damásio leciona que, finalisticamente, as ações que, produzindo um resultado causal, são devidas à inobservância do mínimo de direção finalista no sentido de impedir a produção de tal conseqüência. Essas ações são tipicamente culposas8. O conceito de ação apresentado por Welzel é, essencialmente, o mesmo que encontramos em Reinhart Maurach9. E ecoa, em boa parte, nesta definição de Bettiol: Possiano, quindi, difinire l`azione come um movimento musolare volontario conscientemente diretto allá realizzazione di um fine10. Entre nós, Heleno C. Fragoso segue esse dogma11. Assim, o finalismo da ação não avalia ou valora a causalidade isoladamente, mas o desvalor da conduta.

Ora! Ao editar o Código de Trânsito Brasileiro, o legislador criou o homicídio culposo qualificado (artigo 302, parágrafo único). Até então, homicídios culposos decorrentes de acidentes de trânsito, também, eram sancionados pelo Código Penal, artigo 121, parágrafo 6º, que na sua edição em 1940, já justificara na Exposição de Motivos da Parte Especial (ratio legis), em seu item 39, previsão de sanção mais severa nos casos de homicídio culposo, direcionada, pois, pelos decorrentes da condução de automóveis. Mas, o legislador hodierno, tomado da estatística de mortes no trânsito, padecendo da técnica da ciência do Direito, especializou o ordinário. E, como um plus, editou o homicídio culposo na direção de veículo automotor, sancionando pena acentuadamente mais severa e grave em face àquele tipo penal ordinário.

Outrora, à época da origem do vigente Código Penal, demonstrando que a teoria finalista da ação tem conteúdo axiológico no desvalor da conduta ou ação, a Exposição de Motivos, referindo ao crime de lesão corporal culposa (item 42), afirmou que não se distingue, aqui, entre maior ou menor importância do dano material: leve ou grave a lesão, a pena é a mesma, isto é, detenção por 2 meses a 1 ano. Aqui didaticamente se exemplifica com vislumbrante raiar de clareza, que em sede de crime culposo a lei somente efetua uma única valoração de conduta, mesmo se as conseqüências dessa lesão corporal culposa resultar para a vítima: incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração de parto; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização de membro, sentido ou função; deformidade permanente; aborto. Isso pode ser suscetível a vítimas de lesões corporais no trânsito e quer a vítima sofra escoriações ou perda de membro ou função, a pena é a mesma. A valoração é uma.

Desta forma, a inconstitucionalidade do crime culposo qualificado é evidente. Primeiramente, porque afronta o princípio da igualdade de tratamento (CF, artigo 5º, caput). Ora! Se não há a vontade (na conduta) dirigida para o resultado, que nem mesmo é previsto, como se valorar uma circunstância objetiva separando-a do resultado danoso contido no caput do tipo culposo? Como dizer que esta circunstância é mais ou menos danosa que outra, se não há uma vontade dirigida ao evento, tampouco seu conhecimento ou sua previsão?

Se essa circunstância não é causa, tampouco instrumento ou meio ou motivação determinante do resultado, juridicamente consubstancia em elemento de discrímen inadmissível, em fato típico culposo. Reprimir de forma distinta e subjetiva o motorista, com inadmissível ausência de correlação baseada na causa motivadora determinante, com a finalidade legal subsumida de punir exemplarmente e mais severamente, valorando adicional e objetivamente o mesmo fato, considerando, por exemplo, o lugar onde se deu o evento danoso, como sendo na calçada.

Para melhor entendimento sobre o elemento discrímen aqui combatido, que no presente caso versa sobre uma circunstância objetiva, buscamos a exegese do professor Damásio E. de Jesus, que nos ensina que “quando, excluindo-se certo dado, não desaparece o crime considerado, não surgindo outro, estamos em face de uma circunstância. Logo, os dados referentes ao tempo, lugar, maneira de execução etc. são circunstâncias do crime. São accidentalia delicti e não essentialia delicti”12.

Nesse sentido também ministra o eminente jurista Francisco de Assis Toledo sobre as circunstâncias “designamos com a expressão elementos objetivos todas as circunstâncias da ação típica que não pertençam ao psiquismo, ao mundo anímico do agente. Com isso não estamos afirmando que o termo objetivo só se refira a objetos perceptíveis pelos sentidos. São objetivos, todos aqueles elementos, descritivos ou normativos, que só podem ser alcançados pelo dolo do agente”13, sob pena de se consagrar o princípio do versari in re illicta (responsabilidade penal objetiva).

É vislumbrante a incompatibilidade do tipo culposo, norma penal em branco que é, com a incidência de circunstância qualificadora objetiva de causa de aumento de pena. O elemento discrímen consubstanciado no lugar onde se sucedeu o homicídio culposo — na calçada, por exemplo —, além de se proceder à segunda valoração do mesmo fato culposo, fixando adicionais limites de graduação, ser vedada a título de circunstância qualificadora objetiva de aumento de pena, está fora do desvalor da conduta ou ação e da vontade, ferindo os princípios da teoria finalista da ação, da Ciência Penal, e, com efeito, o princípio da não-contradição lógica do tipo penal. Exemplificando situações, compare-se o absurdo.

Se uma pessoa estivesse em um ponto de ônibus ou no limite de um acostamento de uma estrada e aí fosse atropelada e desse modo desfalecesse, por conduta desse motorista imperito. O perigo enfrentado por essa vítima foi simetricamente, até maior, do que se sucedesse numa calçada. A analogia está presente. Então, indaga-se: qual pena poderia ser imputada ao motorista atropelante da pessoa que estava no ponto de ônibus ou no acostamento dessa estrada? A resposta é óbvia, está contida na sanção do artigo 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro. Nota-se o absurdo discrímen, dada essas situações serem semelhantes.

Data maxima vênia, porque atua na reprovabilidade do agente, também, contraria a concepção unitária da teoria normativa pura ou limitada da culpabilidade, que inobstante não possuir o caráter de preceito constitucional, vem, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previstos pela Constituição Federal (C.F., artigo. 5º, parágrafo 2º), porque tutela a liberdade da pessoa.

Como se não bastasse, com a aplicação da qualificadora no crime de homicídio culposo, se está afrontando o princípio da individualização da pena e do “nom bis in idem”. O grau de culpabilidade estabelecido, de maior reprovação penal está evidenciado pela condição especializante do tipo. Aí já está o desvalor da conduta. Com efeito, se o Juiz ao aplicar a pena, necessária e suficiente para reprovação do crime, deve considerar o artigo 59 do Código Penal, então ao valorar o fato não estará ele valorando as circunstâncias do crime!? Nesse sentido, a Exposição de Motivos é explícita: “Preferiu o Projeto a expressão culpabilidade em lugar de intensidade do dolo ou grau de culpa, visto que é graduável a censura. Dessa forma, a graduação da culpa não pode ser extirpada do artigo 59 do Código Penal”. Entendimento esse está inserto em julgados do Superior Tribunal de Justiça14.

Pressuposto essencial da concepção unitária da culpabilidade está “na exclusão da área do juízo de ilicitude os fenômenos puramente causais, inevitáveis, ocorridos sem qualquer interferência da vontade humana, ou seja, o puro resultado físico. Isso quer dizer que somente as condutas (...) culposas a vontade só alcança até a causa desse resultado”15.

Julio Fabrini Mirabete, ministra que “se tratando de causas de aumento ou diminuição (de pena) previstas em limites variáveis (qualificadoras), elas devem ser calculadas em razão das próprias causas e não das circunstâncias do crime, pois estas já foram apreciadas no cálculo da penalização”16. Nesse diapasão a doutrina denomina as causas especiais de aumento de pena, como circunstâncias qualificadoras. “Tipo fundamental ou básico é o que nos oferece a imagem mais simples de uma espécie de delito. Tipo derivado, não autônomo, é o que se forma a partir do tipo fundamental mediante o acréscimo de circunstância que exprime uma agravação ou uma atenuação do conteúdo do injusto ou da culpabilidade do delito-base”17. Nesse sentido, Reinhart Maurach18. Assim, quando o tipo derivado constitui modalidade agravada, o crime por ele modelado denomina-se qualificado19. Inadmissível em sede de crime culposo, em face à concepção unitária da culpabilidade.

Manifestando-se sobre questão semelhante, o Supremo Tribunal Federal manifestou que “não se prestam a motivar a exacerbação da pena-base nem circunstâncias elementares do tipo, nem a opinião do Juiz sobre o desvalor em abstrato da figura penal”20. Neste sentido já decidiu em questão de aplicação da pena, o Superior Tribunal de Justiça: “Ao proceder a individualização da pena, o Juiz, após aferir um leque de circunstâncias de natureza subjetiva – culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente – e de natureza objetiva – motivos, circunstâncias e conseqüências do crime -, fixará aquela aplicável dentre as cominadas, em quantidade que for necessária e suficiente para reprovação e prevenção do delito, definindo, a seguir, o regime inicial de cumprimento da pena, a qual não deve ser excessiva, nem demasiadamente branda, mas justa, adequada e idônea, em qualidade e quantidade suficientes para reprimir a prática da infração e promover a tutela da sociedade”21. Corolário dessa interpretação é julgado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo in RT 63/279.

Senão vejamos. Se por imperícia, em tese, o motorista perde o governo de seu veículo em via pública e vem a atropelar uma pessoa, sobre a calçada, que vem a desfalecer. Uma segunda valoração ou avaliação somente pode ocorrer na aplicação da pena em crime de natureza dolosa por via da vontade dirigida ao resultado segundo o instrumento ou meio ou motivação determinante do resultado, como por exemplo, se sucede ao § 2º, do artigo 157, do Código Penal, conditio sine qua non demonstrativa da intencionalidade do agente (item 38 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal de 1940). Julgados do Supremo Tribunal Federal remanescem nesse sentido22.

É de implicação material-constitucional, pois que já se decidiu que “a incorporação do princípio do ne bis in idem ao ordenamento jurídico pátrio, ainda que sem o caráter de preceito constitucional, vem, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previstos pela Constituição Federal (CF, artigo 5º, parágrafo 2º), cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar”23.

Isto posto, é inconstitucional o tipo penal descritivo do homicídio culposo qualificado, devendo o argumento ora explicitado se aplicar, também, ao crime de lesão corporal culposa qualificada, ambos editados pelo novo Código de Trânsito Brasileiro.

Referências bibliográficas:

1. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 15ª ed., 1987, Saraiva, pg. 301.

2. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, v. IV, p. 447, 1ª ed., 1987, Forense.

3. FERREIRA, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1983, p. 632.

4. MARTINS, Ives Gandra. Comentário à Constituição do Brasil, 1º v., p. 424/425, 1988, Saraiva.

5. WELZEL, Hans. La teoria de la acción finalista, trad. Carlos Fontán Balestra e Eduardo Friker, Buenos Aires, Depalma, 1951, p. 20.

6. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., 2000, Saraiva, p. 138.

7. WELZEL, Hans. Das neue Bild des Strafrechtssystems, 4. Aufl. Berlin, Walter de Gruyter, 1969, p. X; & Diritto Naturale e giustiza materiale, trad. Giuseppe de Stefane, Milano, Giuffrè, 1965, p. 369-70.

8. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 11ª ed., 1986, Saraiva, p. 204.

9. MAURACH, Reinhart. Deutsches Strafrecht, 4. Aufl., Karlsruhe, C.F. Müller, 1971, p. 161.

10. BETTIOL. Diritto penale, 7. ed, Padova, CEDAM, 1969, 9 ed., 1976, p. 240.

11. FRAGOSO, Heleno C. Lições de direito penal, parte geral, Bushatsky, 1983, p. 167.

12. Obs. Nota 8, p. 478-9.

13. Obs. Nota 6, p. 153-4.

14. RSTJ 17/473 e JSTJ 22/223.

15. Obs. Nota 6, p. 163.

16. MIRABETE, Julio Fabrini. Código Penal Interpretado, 2ª ed., Atlas, São Paulo, 2001, p. 444.

17. JESCHECK, Hans – Heinrich. Le hrbuch des Strafrechts, 2. Aufl., Berlin, Duncker & Humblot, 1972, p. 201-2.

18. Obs. Nota 9, p. 241.

19. Obs. Nota 6, p. 150.

20. S.T.F. HC 79.949-3 SP, DJU de 4/8/2000, p. 5.

21. RT 732/605-6.

22. HC 82601 / Pernambuco, Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA; 11.02.2003; S.T.F., Segunda Turma; D.J. 25.04.2003, p. 064; HC 71509 / Paraíba; Relator Min. MARCO AURELIO; 30.08.1994; S.T.F., Segunda Turma; D.J. 27.10.94, p. 29163; HC 60532 / Minas Gerais; Relator Min. SOARES MUNOZ; 11.03.1983; S.T.F., Primeira Turma; D.J. 08.04.83, p. 04148 - RTJ vol. 106-02, p. 0531.

23. S.T.F. HC 80263/SP - SÃO PAULO, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma.

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