O princípio constitucional da razoável duração do processo também se aplica à fase do inquérito policial. Por isso, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça trancou operação policial deflagrada em 2002 para investigar crimes de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro que até hoje não foi transformada em denúncia.
A decisão foi tomada em fevereiro num Habeas Corpus impetrado pelo advogado Gammil Föppel. O Ministério Público Federal já recorreu ao Supremo Tribunal Federal.
Os ministros do STJ seguiram, por maioria, o voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior. Para ele “mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo), um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa". Ficou vencida a ministra Maria Thereza de Assis Moura, que votou para negar o HC.
O inquérito trancado é o da outrora famosa operação alquimia, tocada em conjunto pelo Ministério Público Federal e pela Receita Federal. A investigação começou em 2002, diante de indícios de que empresas no Brasil inteiro estavam sonegando impostos. As primeiras medidas cautelares, no entanto, só foram impostas pela Justiça Federal da Bahia nove anos depois, em 2011.
Segundo a Receita, 300 empresas haviam sonegado R$ 1 bilhão em tributos federais, o que levou ao bloqueio de uma ilha inteira para o pagamento das quantias. Quando chegou ao STJ, em 2013, o número de empresas investigadas já havia caído para 165.
No dia da deflagração da operação, 23 pessoas tiveram a prisão temporária decretada e outras 45 foram alvo de condução coercitiva.
Segundo informações divulgadas pela Polícia Federal na época, a operação mobilizou 650 policiais federais, entre agentes e delegados, além de auditores fiscais.
Dois anos depois da “megaoperação” divulgada pela Receita, o STJ concedeu Habeas Corpus, também impetrado por Gammil Föppel, para trancar o inquérito em relação a uma das acusadas. Isso porque entre 2002 e a data do julgamento, embora a investigação tratasse de sonegação fiscal, não foi lançada qualquer dívida tributária em relação à investigada – o que viola a Súmula Vinculante 24 do Supremo, que diz não haver crime fiscal antes do lançamento do débito.
Reforma do Judiciário
Na decisão de fevereiro, a 6ª Turma deixou claro que a condução da operação foi inconstitucional. Especialmente depois que a Emenda Constitucional 45/2004, a que instituiu a Reforma do Judiciário, constitucionalizou o princípio da razoável duração do processo.
Para o ministro Sebastião, o princípio se aplica também a processos e procedimentos administrativos, como são os inquéritos. E no caso da operação alquimia, ainda que os crimes investigados sejam “de difícil apuração”. Mas, “da análise da situação posta, não chego a outra conclusão, senão pela ocorrência de constrangimento ilegal, em razão do alegado excesso de prazo para o encerramento do procedimento investigatório instaurado contra a recorrente e os demais investigados”.
A ministra Maria Thereza discordou do relator. Para ela, o fato de terem sido usadas empresas de fachada para maquiar o patrimônio real dos investigados “estaria dificultando sobremaneira a operação”. “Reitero que concordo com a tese jurídica invocada, mas entendo que não tem aplicabilidade no caso concreto”, concluiu.
Casos excepcionais
O caso chegou ao STJ depois que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou pedido de trancamento. A corte havia entendido que, embora a Constituição diga que os processos tenham de ter “duração razoável”, não existe “preceito legal a corroborar tal consequência”. Para os desembargadores mineiros, a demora pode acarretar na punição dos responsáveis pela demora, mas não no trancamento da ação.
Depois do voto do ministro Sebastião, o ministro Rogério Schietti declarou voto para justificar a decisão que a 6ª Turma estava tomando. Segundo, “somente em casos muito excepcionais” o STJ tranca inquéritos por excesso de prazo.
Schietti afirma que o Código de Processo Penal, por ser “anacrônico, defasado”, é omisso em tratar de prazos para a tramitação inquéritos. Por isso, quando não há investiga preso, o aparato estatal trabalha com o prazo prescricional de 20 anos para terminar as investigações. “Talvez no caso sob exame um ou outro crime eventual já tenha prescrito, mas como nem se apurou quais exatamente foram os crimes, qual a modalidade criminosa, ficaria sempre uma incerteza quanto a este prazo”, afirmou.
Grande engodo
O advogado Gammil Föppel comemora o resultado. Segundo ele, a 6ª Turma produziu “importante precedente que se alinha aos anseios de processo penal democráticos que emergem da Constituição”.
Na opinião do criminalista, a decisão é mais um obstáculo para que investigações falaciosas e vazias se alonguem indefinidamente como se fossem uma eterna espada na cabeça das pessoas apontadas como investigadas.
“A ausência de oferecimento de denúncia revela, a não mais poder, a ausência de indícios mínimos que dessem qualquer concretude à malfadada operação, que não passou de um grande engodo”, declarou. O Ministério Público Federal já recorreu da decisão ao Supremo.
RHC 61.451
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Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2017.
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