Francisco Muñoz Conde, professor de Direito Penal na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha.
Como o senhor definiria o direito penal hoje?
Como um caos e uma catástrofe [risos]. O direito penal das liberdades e das garantias, que é teoricamente compatível com o Estado de Direito, está em decadência por causas políticas, econômicas e sociais. Depois do atentado de 11 de setembro, com o crime organizado e o tráfico de drogas, o direito penal virou mais uma arma de restrição. Um famoso penalista alemão fala que precisamos de um direito penal do inimigo, não sou dessa opinião, mas é a tendência.
O senhor comentou em outra entrevista que as soluções ficam entre a tolerância zero e o direito penal do inimigo...
É exatamente o que penso: tolerância zero e penas duras para as classes baixas. Agora mesmo vi a polêmica sobre a redução da maioridade penal no Brasil. A Constituição brasileira diz que os menores de 18 anos devem ser excluídos do direito penal comum, mas a tendência é exatamente contrária.
E o senhor é contra [a redução]?
Isso não soluciona o problema da criminalidade, é uma prova da tolerância zero. Sou contrário à redução da maioridade penal em qualquer país. As crianças pobres não têm possibilidade de ter melhor formação cultural e intelectual. A solução não é criminalizar ainda mais, mas dar condições sociais. Em caso de crise, é muito fácil reformar o Código Penal, pois não custa dinheiro e as pessoas ficam tranquilas, mas os problemas ficam.
Como o senhor vê as propostas de reforma do nosso Código Penal?
A tendência do direito penal do inimigo é a tolerância zero, e sou contrário a tudo isso porque não é uma reforma. No início da democracia na Espanha, a tendência foi de despenalizar tudo porque o direito penal da ditadura era “de sangue e lágrimas”, ou seja, um direito penal duro. Mas, nos últimos anos, com governos democráticos, tudo isso vai em direção contrária. É um absurdo que uma sociedade democrática, liberal e mais progressiva tenha, ao mesmo tempo, um direito penal regressivo e autoritário.
Nosso Código Penal valoriza os crimes patrimoniais. Seria adequado propor penas alternativas ou menores para esse tipo de crime?
Os crimes patrimoniais sem violência não devem ser punidos com penas muito graves, pode haver alternativas. Mas, para a violência, não há alternativa, tem que haver uma resposta punitiva. Não sou abolicionista, mas punição não significa eliminação da pessoa. O sistema punitivo deve ser humanizado e, sobretudo para os casos não violentos, deve se buscar alternativa à prisão e à pena de morte.
Como o senhor avalia a evolução do direito penal brasileiro?
O problema do Brasil é a criminalidade violenta, o crime organizado, o tráfico de drogas, mas há também a criminalidade econômica e a corrupção. Mas isso não é um problema somente do direito penal. O corrupto deve ser punido, mas por que existe corrupção? Por causa do direito penal?
Ou seja, tornar a corrupção um crime hediondo não adianta nada?
Tornar a corrupção crime hediondo basta para tranquilizar as pessoas e a opinião pública, mas não para solucionar o problema. O direito penal é apenas uma pequena parte da solução, é como a ponta do iceberg, o que está abaixo da água é ainda pior. É um problema estrutural, econômico, cultural e social, e tudo isso também deveria ser reformado, deve haver a expansão dos controles democráticos com a consciência de que os bens públicos são de todos.
Qual seria o freio para o aumento da criminalidade na América Latina?
A criminalidade é causada por parte da população que não tem nível o mínimo de conhecimento. O direito penal deve ser aplicado em casos graves, mas devem ser adotadas outras medidas econômicas, sociais, políticas, culturais e educativas.
Isso poderia reduzir, inclusive, a quantidade de presos?
Sim, porque há o problema da prisão preventiva no Brasil. Mais da metade das prisões são preventivas. E, teoricamente, são pessoas inocentes. Como podem estar tanto tempo na cadeia se não foram julgados ainda?
No Paraná, por exemplo, existem 28 mil presos, sendo que quase 10 mil são presos provisórios. Outro problema que temos é a estruturação da defensoria pública, que possui apenas dez defensores para atender todo o estado. O que o senhor acha desse cenário?
Mas isso é anticonstitucional! A defensoria pública não existe na Europa, pois é algo típico dos latino-americanos. Sei que não funciona bem em muitos países, mas é uma coisa boa que deve ser fomentada. Mas, se em todo o estado existem somente dez defensores públicos, isso é brincadeira.
Há um problema de comunicação entre os outros poderes e o Judiciário?
Os juízes têm problemas para julgar e condenar. As pessoas poderosas têm os melhores advogados e controlam os meios de comunicação para evitar ou obstaculizar o julgamento. Os juízes são controlados pelo Poder Executivo, que pode fazer de tudo para evitar que o Judiciário possa os controlar. Isso ameaça a independência do Judiciário, que só deve ser controlado pela lei. Se for diferente, como o Poder Judiciário pode acabar com a corrupção?
E entre o Legislativo e o Judiciário?
A legislação primária é simplesmente a lei. Quando aplicada ao caso concreto, há outra forma de criminalização, que é secundária. Essa diferença entre criminalização primária e secundária é importante porque as leis podem ser perfeitas, mas, se não são aplicadas corretamente, não têm eficácia. Quem faz as leis são os políticos eleitos democraticamente por influência das campanhas midiáticas, não por influência do conhecimento técnico. O movimento feminista e ecológico são exemplos de influência também. Hoje em dia, as leis são altamente positivas nesse aspecto, como a lei de crimes ambientais do Brasil.
E até as novas Constituições têm incorporado isso.
Exatamente. O Código Penal do Equador, por exemplo, tem artigos que tratam dos crimes ambientais e do feminicídio, que é o crime qualificado contra a mulher. Mas existe o problema da tolerância zero porque as leis ambientais e de violência de gênero, em um sentido, também criminalizam demais os problemas que não são próprios do direito penal. Mas esses movimentos sociais são tão importantes que os legisladores fazem o que o movimento quer. Penso que é positivo, mas devem existir limites. Todas as reformas penais condicionadas por movimentos sociais em sentido repressivo são reformas sem eficácia.
O senhor conhece bem o Brasil. Nas últimas visitas, tem percebido mudanças na nossa sociedade?
A situação é muito melhor, naturalmente não neste momento pontual. No governo Lula a economia foi muito melhor, e os pobres subiram a um nível um pouco melhor. Em geral, o Brasil é um país muito rico, mas é um país injusto. O problema é que essa injustiça social e econômica tem raízes muito profundas. O Brasil é reconhecido como uma das grandes potências emergentes no plano macroeconômico, mas deve melhorar no plano social.
E no plano do futebol?
Os melhores jogadores do Brasil estão na Espanha [risos]. O Neymar, por exemplo.
Para o senhor, Neymar é bem vindo à Espanha?
Para mim, não, pois torço para o Real Betis de Sevilha [risos]. O futebol na Espanha é algo importante, mas não graças aos jogadores espanhóis, que também são muito bons, mas, sobretudo pelos jogadores do Brasil e da Argentina. O futebol na Espanha é como no Brasil: vamos para o futebol para esquecer os problemas.
É a sua primeira vez em Curitiba. O que achou da cidade?
É uma cidade muito tranquila, mas distinta do resto do Brasil, é uma cidade mais europeia.
Gazeta do Povo. Justiça e Direito. 26/07/2013
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