Por Neemias Moretti Prudente
“A polícia brasileira está entre a polícia que mais mata no mundo. Nunca policiais brasileiros mataram tanto”, é o que mostra o relatório publicado em dezembro de 2009 pela ONG Human Rights Watch. O relatório, elaborado com dados coletados em dois anos de pesquisa, contém 134 páginas e intitula-se “Força Letal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo”. 1
Os dados são alarmantes. Desde 2003 as polícias do Rio e de São Paulo juntas mataram mais de 11.000 pessoas em casos registrados como “auto de resistência seguida de morte”’. São mais de 1.000 pessoas por ano. Em 2007, na cidade de São Paulo, policiais em serviço mataram uma pessoa por dia (377 casos/ano) e no Rio três pessoas a cada dia (1.330 casos/ano). Em 2008, no Rio de Janeiro, a cada 23 pessoas presas, uma é morta pela policia (1.137 homicídios/ano). Isso representa que no Rio, um em cada cinco homicídios tem como autor um policial (20%). Já em São Paulo, a cada 348 pessoas presas, uma é morta pela polícia.2 Só a título de comparação, nos Estados Unidos, no mesmo ano, foi preciso prender mais de 37 mil suspeitos para que haja uma morte em supostos confrontos.3
Apesar do aumento nas mortes de civis, a baixa de policiais em serviço vem diminuindo. No Rio, de 53 casos em 2004 para 23 em 2007.4 Lembrando que, em 2006, dos 146 policiais assassinados no Rio, apenas 29 estavam em serviço. Boa parte dos 117 restantes possivelmente estavam em atividades ilícitas quando foram mortos, ressaltou Philip Alston (relator da ONU).
Segundo a entidade, os policiais são autorizados a usar a força letal como último recurso, no entanto, as polícias recorrem à força letal de forma rotineira, frequentemente cometendo execuções extrajudiciais e exacerbando a violência. Ou seja, em quase todos os homicídios causados por policiais durante o expediente, relatados como “legitima defesa”, “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, são, na verdade, execuções extrajudiciais, afirma o relatório.
O relatório também chama atenção para outro problema: além dos homicídios após a “resistência” cometidos todos os anos por policiais durante o expediente, as mortes cometidas por policiais fora do expediente matam mais centenas, frequentemente quando agem como membros de milícias (crime organizado) no Rio e em grupos de extermínio (os chamados ‘esquadrões da morte’) em São Paulo.
O relatório afirmou que os policiais envolvidos em mortes ilegais no Rio e em São Paulo raramente são responsabilizados pelo sistema de justiça. A impunidade em casos de execução extrajudicial cometidos por policiais prevalece. Embora muitos fatores possam contribuir para essa impunidade, a causa principal é que os suspeitos destes casos não são investigados como homicídio, mas atos de resistência. Ainda, cabe quase que inteiramente aos membros das próprias corporações tomarem as medidas necessárias para determinar a verdade dos fatos. Dessa forma - enquanto couber as policias investigar a si mesmas – está garantido que não se possa atribuir a responsabilidade criminal aos policiais por assassinato, assim os responsáveis permanecem impunes e as execuções continuam. Nesse sentido, o próprio Congresso Nacional denunciou que a maioria dos inquéritos policiais que investigam extermínios feitos pela polícia são ineficazes e não resultam em punições.
Quando um homicídio é praticado pela polícia, os locais de crime são adulterados, os policiais normalmente manipulam, distorcem ou não preservam as provas que são essenciais para a determinação da legitimidade ou não das mortes. Raramente as reconstituições são feitas. Em outros casos, a polícia é a única a ser ouvida, e o corporativismo prevalece. Uma investigação séria de homicídio é pouco provável, ressaltou Philip Alston, relator da ONU.
A Human Rights Watch obteve provas críveis em 51 casos de "resistência" em que policiais executaram supostos criminosos e alegaram a resistência dessas pessoas à prisão. As provas forenses, em cerca de 33 desses casos (70%), não eram plenamente compatíveis com a versão oficial alegada pelos policiais. Já em torno de 17 (30%) dos casos, o laudo criminal aponta que a polícia atirou à queima roupa. Além desses dados, há mais de 40 entrevistas com autoridades da justiça criminal, familiares das vítimas de abuso, testemunhas e organização da sociedade civil, que também avaliam que as execuções extrajudiciais nos dois estados são um problema generalizado.
A ONU também concluiu que parte da população, temendo o aumento da violência, apóia medidas de extermínio. Inclusive a classe política, em busca de votos, também adota uma postura dúbia. O que dificulta o combate as execuções sumárias ou arbitrárias.
Embora a população acredite que a melhor solução contra a violência é colocar mais policiais nas ruas (37%)5, a maioria da população tem uma imagem negativa dos policiais. É o que mostra uma pesquisa feita pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) em 2008. Segundo a pesquisa, 56,1% da população não confiam na Polícia Militar, 36% confiam em parte, 6,9% confiam totalmente, 0,4% confia e 0,7 não sabe/não respondeu. Em relação à Polícia Civil, 42,9% da população afirmou não confiar na corporação, 44,8% confiam em parte, 9,2% confiam totalmente, 0,5% confia e 2,5% não sabem/não responderam.6
Nesse sentido Sabadell afirma:
Devemos também levar em consideração a ambivalência da opinião pública diante da policia. Muitas pesquisas de opinião indicam que a população aprova a violência policial e inclusive a tortura dos “suspeitos” como meio para combater a criminalidade, mesmo de forma ilegal e violadora dos direitos fundamentais. Mas, ao mesmo tempo, a opinião pública teme os abusos policiais. Temos aqui uma situação problemática que indica que os aspectos ilegais da atuação policial são encorajados por parte da sociedade, que, em seguida, reclama do comportamento policial.7
Nesse sentido, os dois estados implementaram algumas medidas para diminuir os abusos policiais, mas não chegaram nem perto de eliminar o problema. Assim, o relatório apresente algumas recomendações para reduzir a violência policial, dentre elas, i) criação de unidades especializadas dentro dos Ministérios Públicos para investigar homicídios após “resistência”, inclusive com notificação dos policiais ao Ministério Público imediatamente após o ocorrido); ii) estabelecer e rigorosamente implementar procedimentos para a preservação da cena do crime que impeçam que policiais realizem falsos “socorros” e outras técnicas de acobertamento, processando criminalmente os policiais que assim atuarem iii) melhoria no salário dos policiais, pois a baixa remuneração favorece a corrupção, extorsão e trabalhos de assassinos de aluguel iv) mais recursos e mais independências para polícias técnicas v) aumentar a independência das corregedorias e modificar a relação das corregedorias com as chefias da polícia; vi) garantir a segurança de testemunhas de execuções, pois elas têm medo, já que os policiais muitas vezes as atacam e as ameaçam para desencorajá-las de relatarem o que viram. Esse abuso se intensifica após o registro da denúncia vii) aumentar e qualificar os juízes de execuções penais e garantir mais fiscalização nos presídios, já que os presos temem reportar casos de violência viii) garantir a segurança e os direitos dos presos – o governo deve controlar as cadeias ix) reformar as ouvidorias e x) garantir que os policiais responsáveis por execuções extrajudiciais sejam responsabilizados e punidos criminalmente.
Por fim, embora predomine o discurso de que a polícia se empenha ao máximo para evitar mortes, mas “não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos”8 ou “temos que lutar e vencer o crime. Salve-se quem puder”, todos têm direito a vida. Não importa quem quer que seja. A letalidade não pode ser vista como necessária. Essa atitude precisa mudar. Os cidadãos precisam de um policiamento mais eficaz e não de um polícia mais violenta. O Estado tem a obrigação de proteger seus cidadãos. É inadmissível e intolerável qualquer forma de violência, máxime as originárias das autoridades públicas responsáveis pela segurança do cidadão. Melhor é pensar assim, certo?
FORÇA Letal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo. Human Rights Watch. Dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.hrw.org>. Acesso em 22 dezembro 2009.
ONU critica ‘carta branca’ a polícia. O Estado de São Paulo, Cidades, 16 setembro 2008, p. C6.
PAÍS não pune crime de policiais, diz relator. O Estado de São Paulo, Cidades, 15 novembro 2007, p. C10.
POLÍCIA do Rio: a que mais mata no mundo. O Estado de São Paulo, Cidades, 9 julho 2008, p. C1.
POUCA confiança na polícia: pesquisa mostra que instituição não tem crédito com a maioria da população. O Globo, 20 agosto 2008, p. 14.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
SEGURANÇA em Debate. O Estado de São Paulo, Cidades, 03 outubro 2005.
Links relacionados:
Brasil combate violência policial no Rio e em São Paulo: http://www.hrw.org/en/news/ 2009/12/08/brasil-combata- viol-ncia-policial-no-rio-e- em-s-o-paulo.
Neemias Moretti Prudente, Professor de Direito Penal e Processo Penal (UNERJ/PUC-SC). Mestre em Direito Penal (UNIMEP/SP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (ICPC/UFPR). Membro do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa, da Sociedade Mexicana de Criminologia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Membro do Conselho Editorial da Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, da Revista Sociologia Jurídica e da Revista Âmbito Jurídico. Pesquisador, Escritor e Conferencista. E-mail:neemias.criminal@gmail.com.
Como citar: PRUDENTE, Neemias Moretti. A Polícia que Mata. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, ano XI, n.º 61, abr./maio 2010, p. 154-157.
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