sábado, 26 de junho de 2010

Artigo: Até quando será negada a verdade e a justiça?

“Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Quem grita vive contigo!”
Milton Nascimento/Ronaldo Bastos


A decisão do STF, tomada no último dia 29 de abril, que negou o pedido da OAB de reconhecer que a lei da anistia política (Lei 6.683/79) não se estendeu aos torturadores, colocou o Brasil numa posição vergonhosa, condenando-o a viver sob a sombra do obscurantismo e do terror, legados malditos da ditadura militar (1964-1985).
A OAB peticionou arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153), com o objetivo de reiterar os termos literalmente inscritos no corpo da lei, à luz dos princípios dos direitos fundamentais e dos tratados internacionais.
A lei da anistia anuncia em seu artigo primeiro que concede anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes.Conexão pressupõe a existência de dois crimes, entre os quais há um vínculo, ou seja, pratica-se um crime para facilitar ou assegurar a execução de outro crime(1). Portanto, neste caso, crimes conexos são aqueles cometidos para viabilizar a execução dos crimes políticos propriamente ditos como o uso de documentos falsos para se manter na clandestinidade.
Difere, portanto, dos crimes praticados pelos agentes do Estado que os cometeram sob o comando de estratégias de Estado impostas arbitrariamente pela ditadura para eliminar física e moralmente a oposição política em nosso país.
A anistia pressupõe a extinção dos efeitos penais dos crimes cometidos por seus autores e, portanto, estes se tornam impunes. Os presos políticos deixam de ser considerados criminosos. Os torturadores não foram mencionados na lei da anistia. Cometeram crimes de lesa-humanidade e não foram anistiados.
A ditadura militar brasileira (1964-1985) foi responsável por sequestros de famílias inteiras, inclusive crianças, por torturas, estupros, assassinatos, desaparecimentos e ocultamento de cadáveres que, até o momento, não foram entregues aos seus parentes. Tudo isso feito dentro da estratégia de Estado estabelecida com o golpe militar de 64. Em 1979, o regime ditatorial, num contexto de esgotamento moral e político, com conflitos internos no seio do seu próprio núcleo central, passou a enfrentar a pressão de movimentos de estudantes, mulheres, advogados, intelectuais, artistas, parlamentares e representantes de outros setores. Diante das insistentes manifestações de protesto, a ditadura se viu compelida a permitir uma anistia aos opositores políticos, presos, clandestinos ou no exílio, embora parcial e restrita.
Por isso foi concedida, individualmente, e somente para aqueles que cometeram “determinados crimes”. O governo militar divulgou por meio da publicação de listas, os nomes das pessoas anistiadas, no Diário Oficial da União que eram reproduzidas na grande imprensa. Foi rigoroso o controle sobre os efeitos da Anistia, de modo a não perder o domínio sobre aquelas pessoas que não deveriam ser anistiadas.
Não houve autoanistia. Era a justiça militar quem decidia, e o fazia individual e nominalmente. Assim, foi concedida anistia às pessoas processadas formalmente pela Justiça Militar, enquadradas na Lei de Segurança Nacional. As pessoas que não tiveram sua detenção oficializada pelos militares, ou seja, foram sequestradas, sem o reconhecimento oficial da prisão, ou as pessoas que ficaram presas, torturadas, perseguidas e intimidadas todo o tempo pelos agentes policiais, mas que não foram processadas, não foram anistiadas. Não foram anistiadas também as pessoas que participaram da luta armada. Estas só foram libertadas mais tarde com a redução de penas ou pela reforma da Lei de Segurança Nacional.
A decisão do STF nos fez lembrar os momentos de alegria, tristeza e dor que cercaram a aprovação da lei num placar apertado de 206 votos a favor por 201 contrários, naquele memorável dia 28 de agosto de 1979. Alegria porque muitos de nós foram anistiados. Tristeza porque muitos outros não foram anistiados. Dor porque nossos desaparecidos não voltaram sequer na forma de atestado de óbito. Havia a intenção de impor o esquecimento das torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. Mas ninguém ousou escrever isto na lei. Passaram-se os anos e não houve o esquecimento.
Causou-nos estranheza ver o ministro do STF, Eros Grau, afirmar em seu relatório que a anistia vem para pessoas indeterminadas e não a determinadas pessoas, o que contradiz a história vivenciada pela oposição brasileira. Aliás, cada frase, que sustentou a decisão da corte suprema de nosso país, indicou o quanto os ministros que a compõem estão distantes da história e da realidade perversa dos que buscam de maneira incansável a justiça e a verdade na sociedade brasileira. Exceção feita aos dois ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto que votaram contra a maioria. Defenderam a tese de que os “agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia” e “torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião”.
A decisão do STF foi uma decisão política, anti-histórica e absurda. Justamente num momento da vida de nosso país em que temos conquistado espaços democráticos. Mas não se constrói democracia com cadáveres insepultos. A paz social se atinge com a verdade dos fatos.
É sabido que nenhum torturador sentou no banco dos réus. Todos se mantêm e se mantiveram impunes. Mesmo com os protestos vindos de vários setores como a OAB, a Igreja, familiares de mortos e desaparecidos políticos, a anistia foi importante, mas teve limitada sua abrangência, dada a vigência do Estado de exceção e da Lei de Segurança Nacional.
A decisão do STF foi mais retrógrada do que a da época da ditadura. Esta não chegou a anistiar os seus torturadores. Recuou frente a pressão da sociedade civil organizada. Este retrocesso histórico constrange a sociedade brasileira. Repercute mal no mundo inteiro: a ONU e outros organismos de direitos humanos como a OEA, a Anistia Internacional criticam a decisão e questionam a sua validade frente ao sistema de proteção internacional de direitos humanos.
Construir a democracia é percorrer caminhos árduos e o acesso aos direitos fundamentais como a verdade e a justiça devem facilitar o encontro de soluções para os impasses acumulados. Sabemos que os entulhos autoritários, resquícios da ditadura militar, ainda são usados e manipulados como entraves contra o avanço democrático.
Infelizmente estes entulhos contaminam ainda hoje a suprema corte. Lamentável.
As forças defensoras da dignidade da nação precisam ser ouvidas e respeitadas. A democracia não pode ser apenas uma fachada, ela precisa ser um instrumento vivo de efetivação de direitos, capaz de por um fim à impunidade histórica que tem deixado nosso país em posição cada vez mais desvantajosa em relação aos países vizinhos quando o assunto é violação dos direitos humanos.
Solidariedade a todas instituições e pessoas que atuaram para responsabilizar os torturadores contribuindo assim para erradicar a tortura em nossa sociedade.

Nota
(1) PRADO, Luiz RegisCurso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2002.


Maria Amélia de Almeida Teles
Fundadora da União de Mulheres de São Paulo; Membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e coordenadora-chefe do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM.


TELES, Maria Amélia de Almeida. Até quando será negada a verdade e a justiça? In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 12-13, jun., 2010.

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